Uma das acusações que mais se pode fazer contra quem professa ideologias de esquerda é um certo fetiche com regulação estatal. Há uma crença de que o Estado é capaz de regular praticamente tudo na vida, centralizando por meio da legislação a forma como as pessoas devem viver, o que escolher e quais opções de vida tomar.
Sim, é uma crença no sentido de fé mesmo, dado que não há indicador que demonstre, cabalmente, que a regulação estatal é a melhor forma de resolver problemas e direcionar soluções. Em alguns setores não se questiona a necessidade de regulação estatal, podendo ser questionada a intensidade dessa regulação e os benefícios ou malefícios que ela pode proporcionar se imposta em maior ou menor medida.
Contra essa cisma regulatória há o pensamento liberal, cujas bases estão fundadas na desconfiança acerca das condições reais de o Estado prover soluções universais por meio de autoridades centralizadas. O principal argumento é que a vida é complexa demais e o país (pensando no Brasil) é grande e diverso demais para que uma autoridade central seja capaz de ter a visão do todo.
A partir desta perspectiva, adota-se a ideia de que a regulação deve ser a mínima necessária para as situações em que a sua ausência, claramente, gere mais prejuízos do que benefícios. Há um alargamento do valor da liberdade contra o Estado, de modo a trazer o indivíduo para o centro do debate sobre legislação e políticas públicas.
É possível observar, por exemplo, movimentos no âmbito do direito internacional no sentido de repensar as relações internacionais para evidenciar que mais importante que o Estado são os indivíduos que o compõem e são os destinatários do que o Estado faz. Logo, mais importante que a vontade do Estado é a vontade das pessoas.
Percebe a mudança do lugar de fala? Pois é. O ponto central é esse. O poder de regulação estatal deve ser sopesado cuidadosamente com a liberdade das pessoas.
E qual é o critério de sopesamento entre esses dois pontos? O famoso interesse público ou, sendo mais específico, a repercussão pública de ações privadas. Já imaginou se o Estado não regulasse o direito de dirigir? Pensa a ausência desta lei, de modo que quem quisesse poderia, sem critério algum, pegar um carro e sair dirigindo (com ou sem CNH, bêbado ou são).
Se com regulação já é perigoso, dá para perceber que sem ela seria potencialmente caótico ao ponto de inviabilizar a vida em sociedade. Exemplos desta natureza não faltam.
Onde entra o problema proposto no título? Entra no momento em que essa noção de efeitos públicos de ações privadas escapa da racionalidade e se funda na mera moralidade. E este é o cerne da discussão sobre o projeto de lei pautado neste terça-feira na Câmara dos Deputados que propõe a vedação ao casamento homoafetivo.
A par de todas as discussões que este tema pode gerar, no âmbito do direito a única discussão possível de ser feita é: qual a necessidade de se regular a vida privada alheia? E neste ponto, há verdadeiro contrassenso de alguns setores do Legislativo Federal.
Isto porque, a pretexto de defenderem pautas liberais, há aqueles que se agarram a ideias de desregulação estatal e vedação à interferência do Estado na vida privada. Defende-se irrestrito direito de manifestação, como liberdade de expressão, ainda que ofensivo e lesivo a terceiros (chegando ao patamar de se defender a liberdade de criação de partidos com ideologia nazista!).
Defende-se arduamente a desregulação de direitos trabalhistas e de regras sobre a intervenção do Estado na economia. Há clara defesa de redução da carga tributária e da simplificação das regras tributárias.
Para tudo isso o fundamento é o mesmo: a liberdade e a noção de que o Estado não pode impedir o pleno desenvolvimento de pessoas, negócios e ideias. Ocorre que, paradoxalmente, muitos destes representantes estão lá defendendo que o Estado regule as relações de afeto e determine o único modelo possível que as pessoas terão a “liberdade” de exercer seus afetos, colocando na ilegalidade todos os demais!
A pergunta que fica é: porque todos esses argumentos não valem para as manifestações afetivas de pessoas privadas? As relações de afeto são as manifestações mais privadas que um ser humano pode expressar na sua vida, visto que visam exclusivamente àquele a que se direciona o afeto.
Qualquer tentativa do Estado de regular relações de afeto está fadada miseravelmente ao fracasso, dado que é exatamente neste espaço em que as pessoas se manifestam de acordo com o ápice da sua individualidade. Aqui é até curioso que a pauta seja tipicamente capitaneada pela esquerda, tão ciosa da regulação estatal, e afastada por segmentos ditos liberais, tão ciosos da restrição ao poder do Estado.
- Confira: O nome é meu, quem define sou eu
Aqui, a esquerda (sem o dizer expressamente, porque deve ser pecado pelas bandas de lá) assume que a regulação estatal é um problema e, por isso, deve ser evitada, de modo a prevalecer a liberdade em detrimento da regulação centralizada. Mais liberalismo que isso não existe.
Por sua vez, a galera “defensora da liberdade de tudo” nesta hora, como um bom marxista leninista, quer todo o poder do Estado para planificar as relações privadas e impor, de forma centralizada, uma única forma de viver. Mais comunistinha que isso não há.
Percebeu o paradoxo??? Obviamente que não pretendo aqui colocar todo mundo no mesmo balaio, até porque seria leviano. O ponto central é evidenciar que carece de lógica a defesa deste tipo de proposta por quem as defende e isso muito antes de entrar na discussão sobre a inconstitucionalidade do projeto (que é outra discussão).
É importante entender que liberdade só é liberdade se for por inteiro. E principalmente só há liberdade onde o indivíduo tem poder de decidir onde estar, com quem estar, o que fazer de si mesmo e quais relações pessoais irá travar.
Neste ponto falham todos! A esquerda é tão ciosa na defesa dos direitos homoafetivos, capitaneando o discurso sobre a necessária liberdade relacional deste segmento da sociedade (ao argumento de que o amor é diverso e toda forma de amor deve ser respeitada e acolhida). Entretanto, estas mesmas pessoas se calam remansosas sobre a flagrante inconstitucionalidade da vedação à bigamia por ofensa à liberdade religiosa do povo muçulmano.
Nesta cultura e nesta manifestação religiosa é permitido (e em alguma medida até incentivado) a multiplicidade de casamentos simultâneos. Entretanto, no Brasil, estas pessoas estão proibidas pelo Estado de manifestar e viver a sua religiosidade porque o Estado decidiu que só há liberdade para casar com uma pessoa por vez.
E se você tem uma cultura e uma religião diferentes é um problema seu! Mas pergunto eu: o Estado não é laico? A resposta é um sonoro silêncio.
Por outro lado, aqueles que se inflam para abominar o aumento de poder do Estado, se tornam servis subalternos do poder, desde que este atenda às suas demandas morais. E isso sem sequer entender que este tipo de proposta apenas reforça a noção de que o Estado pode interferir em tudo sim, inclusive na sua liberdade individual.
E se pode interferir nos seus relacionamentos afetivos, qual o motivo para não poder interferir no que você diz, pensa, manifesta ou pleiteia? Por que não pode limitar a cultura que você pode acessar? Por que não pode limitar as possibilidades de ideologias passíveis de adesão? Qual a diferença? Nenhuma!
Ou seja, na sanha de ver suas pautas morais atendidas para o efêmero deleite de suas pretensões pequenas, não percebem o quanto esse tipo de postura ataca tudo o que defendem. É míope, pouco inteligente e evidencia uma dificuldade surreal de enxergar de forma minimamente ampla as consequências dos próprios atos.
Qual conclusão podemos tirar de tudo isso: o nosso problema vai muito além de análises constitucionais. Temos um problema estrutural enquanto sociedade. Estamos preocupados demais com o que o vizinho está fazendo e perdendo tempo precioso que poderíamos estar gastando para discutir situações macro, que são os pontos onde efetivamente o Estado impacta a vida de todo mundo.
Há aqueles que dizem que uma fofoquinha é legal, mas o problema do Brasil é que a gente vive da fofoca em um nível institucional. Há uma preocupação tão absurda em regular mesquinhamente o alheio que eu tenho medo de se fazer um plebiscito no país para decidir se o Congresso vai parar um ano para deliberar sobre a regulamentação das preferências amorosas das autoridades ou sobre a alocação de recursos do orçamento da saúde e ficarmos um ano sem SUS.