Neste domingo, na fatídica final da Copa do Brasil entre Flamengo e São Paulo, no Estádio do Morumbi, havia uma programação de divulgação de política pública de governo contra o racismo. Estava agendada, há muito tempo, a presença do Ministro dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida (que é natural de SP), e a Ministra de Igualdade Racial, Anielle Franco.
Apesar da importância do ato e da manifestação de que o poder público está atento aos eventos racistas que, sistematicamente, ocorrem nos estádios brasileiros, não foi isso que ocupou a pauta. Todos os olhos se voltaram para o fato de que o ministro Silvio de Almeida foi para SP em voo comercial e a ministra Anielle Franco foi de jato da FAB.
A diferença: um voo comercial de classe executiva deve estar uns R$ 3.000,00. O voo da FAB pode ultrapassar a casa dos R$ 100.000,00. E isso para fazer o mesmo trajeto. E neste ponto duas discussões são importantes.
A primeira é a linha entre a ilegalidade e a imoralidade. A segunda é a linha entre a moralidade e a hipocrisia.
A primeira é mais fácil de fazer. Isto porque o ato da ministra Anielle está perfeitamente amparado por lei e por decreto, de modo que inexistem irregularidades jurídicas na sua conduta. Era uma agenda oficial, um ato do governo e a ministra estava no cumprimento da sua função pública. Além disso, como ministra de Estado, tem a prerrogativa de solicitar os voos da FAB. Ou seja, tudo perfeitamente legal.
Entretanto, o art. 37 da Constituição da República traz como um dos princípios da Administração Pública a moralidade administrativa. Essa moralidade não é o moralismo subjetivo de cada (pois esse é individual e não pode ser elemento para pautar a conduta do agente público), mas também não se confunde com a legalidade, pois esta também é expressa no mesmo art. 37.
A moralidade administrativa então se constitui como princípio de probidade administrativa, ou honestidade administrativa (e daí a lei que pune a improbidade administrativa). Esta probidade está relacionada não só com a honestidade, mas com a justa expectativa de que o agente público aja de tal forma a zelar pela coisa pública, respeitar a separação entre o público e o privado e fazer uso da máquina para a finalidade que o seu cargo exige.
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Ninguém nega que o agente público de alto escalão precisa fazer viagens frequentes (ainda mais em um país de dimensões continentais como o Brasil) e isso custa caro. Faz parte. Junto com a ministra, inúmeros servidores públicos viajam diariamente e tudo custeado pelo governo.
Ou você acha que a Polícia Federal vai cumprir mandado no Brasil inteiro de carro? Ou que as operações da Receita Federal são via correio e correspondente? Óbvio que não! Vai todo mundo de avião e cada passagem é comprada com dinheiro público e está certo que seja assim.
O servidor público é um trabalhador como qualquer outro e não pode pagar do bolso os insumos necessários para cumprir as suas funções. Basta você pensar se aceitaria um emprego em uma empresa privada que te pagasse um bom salário, mas onde você teria o dever de viajar seguidamente tudo às suas custas.
Coloca na ponta do lápis e você vai perceber rapidinho que a questão aqui é de ganho de eficiência. Se você é empresário, me diz se prefere que um empregado seu (a quem você está pagando o salário) fique 13h na estrada para percorrer os mais de 1.000km entre Brasília e São Paulo ou fique 2h em voo e as outras 10h trabalhando? Ou seja, essa estrutura cumpre outro princípio do art. 37, que é a eficiência.
O problema é poder fazer as coisas de duas formas distintas e escolher a mais cara. Aí que entra a questão da moralidade administrativa. É imoral porque não faríamos se a decisão fosse nossa e o dinheiro saísse do próprio bolso. Logo, não há zelo com a coisa pública porque a situação é desnecessária.
Os voos da FAB se destinam a situações de emergência, quando não há a possibilidade de viabilizar, em tempo, toda a logística de um voo comercial – que é demorado. Exemplo claro ocorreu recentemente com o ciclone no RS. É um desastre, algo emergencial e completamente fora do planejamento. Nada mais óbvio e justificado que solicitar imediatamente um jato da FAB para fazer o trajeto.
Aqui a questão financeira perde valor, pois há valores superiores em jogo e a máquina do Estado está aí para essas situações mesmo. Outra coisa completamente diferente é uma agenda previamente marcada, tudo feito com antecedência e sem qualquer tipo de percalço no meio do caminho.
Esse foi o caso da ministra Anielle e não há meio termo: está errado. Não é ilegal, de modo que não há que se falar em responsabilidade jurídica da ministra. Mas é inegavelmente imoral. Não a minha ou a sua moral (que são subjetivas), mas administrativamente imoral, o que merece resposta política e severa crítica pela demonstração de descompromisso com elementos que deveriam ser básicos para um agente público de alto escalão.
Por sua vez, e retomo eu aqui o segundo ponto, causa espanto a cara de pau de alguns representantes da oposição, causando estardalhaço com o fato acima narrado. Ora vejam só, o pessoal da oposição está agitadíssimo com o abuso de poder e a imoralidade da ministra Anielle e sua gastança com o voo em avião da FAB. É sério?
Sabem quem está chocado com isso? A ex-ministra que levou os parentes da ex-primeira dama para passear em jatinho da FAB.
Sabe mais quem manifestou indignação? O deputado eleito Nikolas Ferreira que recebeu Ministro de Estado em 2022 em jato da FAB para fazer campanha eleitoral (já no segundo turno)!
Sabe quem mais ficou chocado com os desperdícios da esquerda? O deputado Eduardo Bolsonaro, que levou parentes e amigos em helicóptero da FAB para o próprio casamento!
Teve mais gente indignada. O deputado Ricardo Salles, que quando era ministro de Meio Ambiente mandou fretar um jatinho da FAB para receber garimpeiros com o conforto necessário no seu gabinete.
E o ex-presidente, que por uma coincidência daquelas que nenhum flamenguista gostaria, também acionou os caças da FAB para interceptar o voo do Flamengo após o jogo da final do mundial para saudá-los. Dirão os teóricos da conspiração que o Flamengo não só está com má sorte, mas também a está distribuindo para autoridades...
E não se engane, diante de todos esses fatos acima, as pessoas que hoje estão no governo estavam aos brados reclamando dos abusos, desmandos e gastança imoral do dinheiro público. Ávidos por denunciar as irregularidades, buscava-se qualquer fonte para denunciar a apropriação de bens públicos para fins privados e a imoralidade destas medidas.
Deu para perceber a diferença entre a moralidade e a hipocrisia? Enquanto o uso beneficia, está tudo bem. Quando beneficia o outro, é imoral, indevido e precisa de uma dura e rápida resposta.
No fim, está todo mundo errado, mas, como diria a minha avó, no alto da sua sabedoria de interiorana analfabeta: estão todos sentados nos próprios rabos falando do rabo alheio. Em uma ironia um pouco mais polida, mas no mesmo nível de sabedoria, impossível não lembrar de Millôr Fernandes que, cirurgicamente, sintetizou o discurso da maioria política no Brasil: “Democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim”.
Resta a todos nós avaliar se vamos nos ater aos fatos e não às pessoas que praticam os fatos ou vamos continuar tendo políticos de estimação.