Tem um livro muito interessante e que vale a pena ler chamado “Side by Side: parallel histories of Israel-Palestine”, de autoria de Sami Adwan, Dan Bar-On e Eyal Naveh, em parceria com o Peace Research Institute in the Middle East. Desafortunadamente não tem tradução para o português que eu conheça, mas se você se desenrola minimamente com o inglês, vale a leitura.
A ideia do livro é simples e genial: ele começa dos dois lados. As duas capas são capas “da frente” e você escolhe por que lado começar a ler. Se começar a ler por uma capa, vai ler a versão israelense dos principais fatos históricos desde a Declaração de Balfour e depois a instauração do Mandato Britânico da Palestina até os anos 1990 (a edição que eu tenho é de 2012). Se começar a ler pela outra capa, vai ler a versão palestina dos mesmos fatos históricos, de modo que o livro tem dois capítulos I, dois capítulos II e assim sucessivamente.
O surreal é que parece que se está falando de coisas completamente diferentes e não são. Os nomes mudam, as referências mudam, as consequências mudam e a noção de certo e errado também. Desta pequena introdução tiramos uma conclusão importante: a História tem seu método científico (que são modelos historiagráficos), mas em muitas situações acaba sendo o relato de um fato e não o fato em si.
Isto porque, normalmente, quem conta a História é quem venceu a guerra. Além disso, quem conta a História é um ser humano, com todos os seus enviesamentos intransponíveis. Ou seja, há de se ter algum cuidado com a fonte e entender que a fonte tem um lugar de fala. E está tudo bem com isso, pois o ser humano é assim e não vai mudar.
Parêntesis 1: trazendo para exemplos domésticos tupiniquins, podemos citar: foi golpe ou não foi golpe em 2016? Foi golpe ou não foi golpe em 1964? Foi abolição ou não foi abolição em 1888? Para todas essas perguntas a resposta é: depende de quem vai responder. Entendeu?
Voltando: Partindo dessa premissa, anda me causando muito espanto a forma tacanha com que a imprensa brasileira e, por ricochete, as pessoas em geral (nos debates, nas redes sociais e onde possam reverberar suas tendências) têm tratado o conflito entre Israel e Palestina. Fôssemos um pouco mais cuidadosos, teríamos uma certa cautela em nos posicionar sobre um conflito que começa em 66 d.c.
Eu não escrevi errado! Esse conflito começou em 66 d.c. (no ano 66 depois de Cristo). É, no mínimo, um tanto quanto pretensioso da nossa parte fazer afirmações categóricas (e, portanto, simplistas) sobre algo com um nível de complexidade com o qual não somos acostumados a lidar.
Firmada mais essa premissa, ainda temos o fato de que nós, brasileiros, desconhecemos conflitos territoriais fronteiriços. As fronteiras brasileiras sempre foram sólidas e mesmo quando entramos em guerra contra o Paraguai (que é uma vergonha para a História brasileira que ignoramos solenemente), a questão não era de fronteira.
Parêntesis 2: o Paraguai sente até hoje os reflexos dessa guerra, dada a dimensão das violações praticadas pelo Brasil. Até hoje os paraguaios se referem a nós como “imperialistas” e nos veem com certa desconfiança. Por surreal que pareça, somos imperialistas de alguém...
Voltando: ou seja, a gente não tem vivência real e nem histórica de disputas territoriais, de modo que fica mais difícil ter a percepção da construção das vivências e construções culturais a partir do território. Isso é, em parte, o que nos ensina a Geopolítica, dado que estruturas físicas (naturais ou não) são capazes de modular povos inteiros e formatar culturas, costumes, leis e Estados. Não sabemos o que é isso, pois não faz parte da nossa História.
É preciso somar, ainda, que existe uma confusão infantil entre os atores envolvidos neste conflito que só pode ser proposital. Eu continuo firmemente tentando acreditar que não é pura ignorância, até porque, se for, é muito preocupante. A confusão é que há 4 atores envolvidos no conflito e não 2.
De um lado, o povo de Israel e o governo de Israel e, de outro, o povo palestino e o Hamas. O governo de Israel não se confunde com o povo de Israel. Assim como o povo palestino não se confunde com o Hamas. Misturar essas coisas é inadmissível para quem pretende pelo menos pensar um problema.
E é interessante que quem faz essa confusão lá fora é exatamente quem faz questão de separar essa diferença aqui dentro. Vi gente que sempre fez questão de frisar que o atual governo do Brasil não o representa tratar o povo palestino como se fosse o Hamas e o povo de Israel como se fosse o seu governo.
Parêntesis 3: é o tipo de “confusão” que não se justifica. O Brasil é sede de uma das maiores organizações criminosas do mundo: o PCC. Por causa disso, todos nós somos criminosos e devemos ser eliminados por algum “país do bem”? Acho que não, né? Ou então somos governados pelo PT. Então por causa disso, todo brasileiro é petista e endossa e concorda com tudo o que seus dirigentes fazem? Eu também acho que não. E esse “não” é tão óbvio que negá-lo beira a má-fé.
Voltando: Ora, é preciso coerência. E com essa coerência, é possível fazer recortes e ultrapassar esse embate de futilidades que estamos vendo na internet e que amesquinha o sofrimento real de tantas pessoas. A partir disso, é possível entender que o problema é muito mais complexo do que pode parecer ser.
E, mesmo assim, é possível afirmar que o Hamas praticou uma atrocidade contra o povo de Israel. Ao mesmo tempo, é possível afirmar que em Gaza há milhões de palestinos que não têm a menor ingerência neste conflito (e também não o querem) e que estão sofrendo as consequências com a própria vida.
Também ao mesmo tempo é possível afirmar que ver o governo de Israel (e não o seu povo) cortar suprimentos básicos como água, energia e produtos médicos por tempo indeterminado de todo o povo da Palestina é estarrecedor. Fosse tomada uma medida como essa por Daniel Ortega, estariam todos gritando o nome que tem: genocídio. E não é genocídio do Hamas, mas do povo palestino.
Parêntesis 4: curiosamente, aqueles que ignoram laconicamente este fato são, em regra, os mesmos que condenam com veemência os ataques russos contra postos civis na Ucrânia, a evidenciar uma civilidade de ocasião ou por conveniência.
Voltando: Também ao mesmo tempo é possível afirmar que os ataques em massa promovidos pelo Hamas contra o povo de Israel têm nome: terrorismo. Também é possível afirmar, por fim, que o apoio ou a crítica do povo de Israel às medidas de seu governo são sinônimos de que há muito mais complexidade do que afirmações binárias e fechadas.
Só para ter uma ideia, o grupo mais à extrema-direita que eu conheço é “apoiador” do Hamas! Sim, não apoiam o povo palestino, mas o Hamas. E sabe o motivo? Porque, para eles, Israel é o “MST que deu certo” no Oriente Médio.
E se você pegar o mapa do Mandato Britânico da Palestina, assumido pelo Reino Unido em 1923 com a queda do Império Otomano depois da I Guerra Mundial e depois a divisão da ONU de 1947, é exatamente isso mesmo. Israel “tomou posse” como um bom e velho líder do MST de uma terra que julgava (apesar de os documentos dizerem o contrário) ser legitimamente sua. E depois fez outro movimento para expandir a “ocupação” em 1967.
De novo as palavras... se você perguntar para um membro do MST, ele vai dizer que é uma “ocupação”. Se você perguntar para o dono da fazenda, ele vai dizer que é “invasão”. Por que naquele território a percepção palestina seria diferente da percepção do fazendeiro brasileiro?
E advinha em favor de quem o MST brasileiro se posicionou? Do fazendeiro... ou, se quiser contextualizar, do povo palestino.
Por fim, e eu já abordei aqui na coluna esta questão quando tratei das relações entre Brasil e Venezuela, é preciso reafirmar a nossa capacidade precária de pensar o mundo. Ainda agimos em público como se existissem bandidos e heróis soltos por aí se digladiando para salvar ou aniquilar a paz mundial.
Nesse palco, não há heróis e nem bandidos, mas interesses em jogo. É preciso parar (só parar) de acreditar que alguém neste tabuleiro joga por “amor à camisa”, por irresignação absoluta e irrestrito senso de dever. No plano internacional não tem lei, não tem governo, não tem regra e não há limite: tudo é puro instinto de sobrevivência e jogo de força, onde o mais forte vence sempre, ainda que com uso da covardia.
É nada romântico, mas é realista. E, sendo realista, os únicos inocentes dessa história são os mortos, os feridos, os que estão sem comida, sem água, sem suprimentos, os que perderam familiares, os que perderam suas casas e sua dignidade. E isso tudo não respeita fronteira e nem nacionalidade, assolando de um lado e do outro quem quer que não tenha um bom discurso para chamar de seu.
Em suma: a gente precisa com muita urgência parar de ter esse pensamento maniqueísta, no sentido de eleger um para colocar no pedestal do “bom”, do “bem”, do “herói” e do “mocinho” e eleger outro para colocar no pedestal do “mau”, do “mal”, do “vilão” e do “bandido”. Pensar assim só dá “carta branca” para o mocinho fazer atrocidades em nome do bem e impede de se buscar, ainda que minimamente, compreender a causa do vilão ser tachado de vilão.
É preciso ter cuidado com rótulos. No meio do conflito, Jesus foi colocado no pedestal do vilão, perseguido, caçado e condenado; Antônio Conselheiro também foi colocado nesse mesmo lugar e aniquilado por isso; Copérnico foi outro a destilar a sua vilania contra a sociedade por meio dos seus sacrilégios; Zumbi dos Palmares era criminoso e desestabilizada a sociedade.
Por sua vez, o Estado, em nome do bem, praticamente dizimou os Tutsi em Ruanda e apenas uma pessoa foi responsabilizada internacionalmente; o povo armênio viu quase 2 milhões dos seus dizimados entre 1915 e 1923 e absolutamente nada aconteceu, tendo o governo otomano (hoje turco) se resumido a negar o fato e está tudo bem... em nome do bem; assim também foi o Holodomor Ucraniano levado a efeito pelo governo soviético em 1931/33; assim também na Bósnia no recente 1995, onde muçulmanos foram dizimados pelo exército Sérvio. Tudo em nome do bem, tudo em nome da paz.
Cansei. E imagino que você também. Mas se pelo menos deu para ter uma pequena noção de que a questão é muito (muito!) mais complicada do que pode parecer, valeu a pena se desgastar um pouco mais.