As pessoas em geral têm a ideia de que direito é uma coisa e política é outra. Assim, fica separado de um lado o direito, as leis, os códigos, a Constituição (com “c” maiúsculo para mostrar a deferência) e toda a pompa, circunstância e seriedade. Aí de outro lado está a política, esse “circo de horrores” como muitos gostam de destacar.
A política é cheia das bizarrices e basta acompanhar minimamente o noticiário que você se depara com uma lista interminável de exemplos. Eu ainda acho insuperável o “Vossa Excelência recolha-se à sua insignificância” dito por Severino Cavalcanti ao educado, mas malcriado, Fernando Gabeira.
Tem ainda a clássica “são palavras que não aceito, quero que o senhor as engula e as digira como julgar conveniente” proferida aos brados por Fernando Collor para Pedro Simon bem no plenário do Senado. Mas os casos são intermináveis e cada um pode ter um de estimação que ainda sobram exemplos.
Daí você percebe como é tentador colocar essas duas coisas em “balaios” completamente distintos? Você faz uma busca na internet por “direito” e os resultados são sóbrios, pasteurizados até, como se fôssemos todos uma grande ordem uniformizada de sapatos de couro reluzentes e scarpins refinados. Por outro lado, se você faz a mesma busca por política, aparece de um tudo, charge, meme, coisa séria, clichês e mais uma miríade de coisas.
E aí que entra a pegadinha, porque não tem diferença alguma entre uma coisa e outra. Direito e política sem um olhar academicista (e, portanto, tipicamente reducionista para caber no objeto da monografia) são a mesma coisa. Até porque a existência do direito depende da política e é diretamente influenciada por ela.
Direito é política em todos os sentidos. É ingênuo (para não dizer outra palavra mais forte) achar que direito é uma ciência pura a ser pensada, estudada e conhecida independente de vieses políticos. Sabe por que não é? Porque vem o “legislador” (essa entidade abstrata que o academicismo jurídico insiste em mitificar) e diz que omissão de socorro ao morto é crime (art. 304, parágrafo único, do Código de Trânsito).
E mesmo diante disso a gente precisa, com toda a solenidade necessária, continuar dizendo que não existem palavras inúteis na lei.
E agora você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com o título desta coluna e eu te entendo. As vezes eu dou volta demais, mas o objetivo é nobre (o que não significa que seja alcançado): sempre mostrar como tudo pode ser mais complicado do que parece em um primeiro momento.
Pois bem, vimos o noticiário pipocar em meio às (intermináveis e multiplicáveis) guerras uma disputa particular no Brasil: qual é o chocolate da direita e qual é o chocolate da esquerda. Eu tenho certeza que você também foi chamado a se posicionar se o Bis ia ou não mais entrar na sua casa.
E o que mais me chamou a atenção em toda esta discussão circense é que tive a nítida percepção de que as pessoas em geral parecem não ter ideia de como isso impacta negativamente na vida de todos. Alimentar este tipo de discussão é alimentar este elemento pitoresco que vai atingir diretamente a nossa forma de fazer política.
E se atinge a nossa forma de fazer política, atinge diretamente o direito. Daí eu resolvi mostrar um pequeno combo dessas “coisinhas” para a gente refletir. Como eu gosto de apanhar de todos os lados, o combo é de 2022 e 2023, para não dizer que ficou alguém sem ser contemplado:
a) Lei nº 14.315, de 28.3.2022: Confere ao Munícipio de Campo Grande, no Estado de Mato Grosso do Sul, o título de Capital Nacional do Chamamé. Pronto, a nossa vida mudou com isso. E se você descobrir o que é “chamamé” me avisa.
b) Lei nº 14.539, de 31.3.2023: Institui a Campanha Nacional de Prevenção da Exposição Indevida ao Sol. Pode falar que você não sabia dos males da exposição indevida ao sol! E, obviamente, agora que temos lei, ninguém mais vai ficar indevidamente exposto ao sol.
c) Lei nº 14.329, de 3.5.2022: Institui o Dia Nacional do Profissional de Logística. Era a valorização que os profissionais de logística precisavam!
d) Lei nº 14.545, de 4.4.2023: Institui o Dia Nacional da Mulher Empresária. Obviamente você reparou a revolução na vida das mulheres empresárias deste país.
e) Lei nº 14.363, de 1º.6.2022: Confere o título de Capital Nacional da Cerâmica de Alta Temperatura à cidade de Cunha, no Estado de São Paulo. Pronto, como o país viveu sem uma capital de cerâmica de alta temperatura?
f) Lei nº 14.549, de 13.4.2023: Institui a Semana Nacional do Uso Consciente da Água. Agora sim a gente vai usar a água direito.
g) Lei nº 14.389, de 30.6.2022: Institui o Dia Nacional da Natação. Deve ser porque tem pouca água no Brasil, então precisa de comemorações para a gente descobrir que existe a possibilidade de nadar.
h) Lei nº 14.558, de 25.4.2023: Institui o Dia Nacional do Terço dos Homens. Não sei se tem um para as mulheres, mas agora o dos homens tem respaldo legal.
Sabe quanto essa brincadeira custa? Só o Legislativo Federal, no ano de 2022, torrou R$ 12 bilhões de reais. Se dividir esse valor pelos 365 dias do ano, dá R$ 32.876.712,32 (trinta e dois milhões, oitocentos e setenta e seis mil e setecentos e doze reais e trinta e dois centavos) POR DIA!
É uma draga sem fim de dinheiro! E isso não seria o maior problema se ele fosse direcionado para coisas efetivamente úteis e não para estabelecer o dia nacional da natação! E esses aí são só uma parte do todo. Se fosse colocar a lista de coisas estúpidas que estão publicadas somente em 2022 e 2023 esta coluna teria o tamanho de um testamento.
E observe que esta lista da estupidez se refere ao que foi aprovado! Tem a lista do que foi rejeitado e que é mais difícil de acompanhar e até mesmo de saber que existe.
Sabe qual a fonte de tudo isso? A discussão pelo Bis e o KitKat. Sim! Quando se percebe que a força motriz da atenção das pessoas está no que é esdrúxulo e estúpido, é isso que vai movimentar a conduta daqueles que precisam viver da movimentação desta força.
Quando a estrutura do legislativo é utilizada para institucionalizar o dia do terço dos homens, o que está acontecendo é a apropriação política da ideologia da discussão do Bis. É a idiotização da máquina em prol da contemplação da idiotização do discurso.
E o pior: funciona! Ou seja, quando um político fala uma bobagem, não é vergonha alheia, mas vergonha própria. E está faltando vergonha. Talvez o que a gente mais precise atualmente é de ter vergonha.
É preciso criar uma política pública em prol do constrangimento, com o objetivo de incentivar as pessoas a sentirem vergonha de participar de coisas estúpidas, de falar asneiras e, principalmente, de guiar o pensamento sobre os rumos do país baseados em fundamentos incabíveis para a 5ª série C (quem é da década de 1980 vai entender...). Garanto que se a gente começasse a ficar com vergonha dessas coisas já melhorava bastante e, muito provavelmente, sobraria tempo e dinheiro para falar do que importa.
O espaço político não é um lugar para se divertir e não deve ser em hipótese alguma. É sisudo, burocrático, chato mesmo, porque deve ter gente falando de coisa séria, de forma séria e, preferencialmente, de forma econômica, o tempo todo.
Eu tenho muita vergonha de ver um monte de adulto se propondo a discutir politicamente marcas de chocolate, principalmente quando percebo que eles realmente estão se levando a sério. Ao mesmo tempo, percebo o porquê de a nossa democracia ser tão frágil e tão irreal: a gente se distrai por muito pouco e ainda tem dificuldade de separar o que é e o que não é importante.
É só jogar um chocolatinho na mesa que as crianças se estapeiam e se lambuzam enquanto alguns adultos se deliciam com o fondue.