Recentemente presenciamos, pelo menos com espanto e indignação, os ataques ao sistema de transportes do Rio de Janeiro. Tive a infeliz oportunidade de ver ônibus sendo incendiados com pessoas dentro, inúmeras pessoas sem ter como ir ao trabalho ou voltar para as suas casas e se amontoando em transportes improvisados e perigosos para se locomover.
E não se trata de um fato isolado ou um arroubo qualquer, mas de um ataque sistemático e organizado com o objetivo específico e claro de gerar o caos, paralisar a cidade e impedir o seu normal funcionamento. Visa diretamente atacar instituições, intimidar o Estado e a população e criar circunstância para a obtenção de benefícios a um determinado grupo.
É uma forma peculiar de extorsão, dado que ocorre como um jogo de forças em que uma parte demonstra a sua capacidade de distribuição do caos e desestabilização do normal funcionamento das instituições e, em troca, exige o afrouxamento de suas “amarras” para devolver “a paz”. Ninguém está inventando a roda, visto que se trata de mecanismo já antigo e nada inovador.
O ponto central, entretanto, não é entender do que se trata, mas de dar nomes para as coisas, de modo a permitir que possamos ver os fatos com mais clareza. Já percebeu como a falta de nome dificulta o entendimento das coisas?
A lei tem uma função que talvez poucas pessoas se atentam, mas que vale muito a pena destacar. A lei dá nome para as coisas que acontecem no mundo da vida e quando a lei “batiza” um fato ele passa a ser visível.
Quer um exemplo fácil de entender: eu tenho absoluta certeza que você conhece “feminicídio”. Pois é, algo que a gente vê hoje e compreende com muita clareza. O que talvez você possa não ter refletido é que essa palavra “surgiu” na legislação somente em 2015, ou seja, há míseros 8 anos.
E te falo com toda segurança, pois em 2015 eu já tinha uns 10 anos de estrada no direito, antes da lei essa palavra simplesmente “não existia”. Ou seja, a lei classifica um fato da vida (que na prática sempre existiu) e, com isso, lhe dá visibilidade, chamando a atenção das pessoas.
No caso do Rio de Janeiro, é preciso que usemos a lei para dar o nome adequado às coisas e, com isso, permitir que tenhamos uma visão mais clara sobre o que está ocorrendo. Precisamos falar mais de terrorismo. Sim, nós temos uma lei que trata sobre terrorismo e que contempla a nossa realidade regional.
É importante ter em mente que alguns termos tratados de forma generalizada (e que têm grande repercussão internacional por causa das grandes potências) geram uma visão distorcida das coisas. Quando se fala em terrorismo, é quase intuitivo pensar no ataque promovido pela Al Qaeda contra as torres gêmeas nos EUA e, a partir daí, a nossa imagem de terrorismo (e do terrorista) fica estereotipada.
Ocorre que a América Latina em geral (e o Brasil, neste ponto, não é diferente) não tem histórico de guerras ou conflitos regionais. Quando se pega o mapa das guerras e conflitos, é interessante perceber que nós praticamente não temos histórico de guerras e muito menos de conflitos fronteiriços.
Talvez até isso ajude a entender porque é tão difícil para nós, do lado de cá, entender tantos problemas de fronteiras que a Europa em geral (e mais especificamente a Europa oriental) enfrenta. O nosso caso é um bocado diferente.
Se não temos problemas com fronteiras e muito menos um relacionamento belicoso com outros países, somos um desastre em termos de segurança pública e tratamento da criminalidade organizada. E isso não é um problema brasileiro, mas da região inteira.
Das maras centro-americanas, aos cartéis do lado oeste do continente até o nosso PCC, a estrutura violenta do crime organizado na América Latina tem as suas peculiaridades e uma relevância absurda na configuração da vida e das instituições pelas bandas de cá. E, como é de conhecimento comum, essas peculiaridades geram tanto caos e mortes como as guerras europeias, de modo que estamos falando de configurações distintas, mas de resultados tão ou mais catastróficos.
Por isso, antes mesmo de tentar pensar em soluções (que, ao contrário do que devaneiam alguns, não são simples), é preciso dimensionar o fato com que estamos lidando. E se a gente pegar a lei, ela dá nome: é terrorismo.
Em terras brasileiras, a Lei n. 13.260/2016 trata como terrorismo, dentre outras condutas, a provocação de “terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. São atos de terrorismo, dentre outros, “sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência ou grave ameaça a pessoa (...) de meio de transporte”, quando neste contexto a ação busca provocar terror social ou generalizado.
Quer saber a diferença? “Tocar fogo” no transporte público é dano qualificado pelo emprego de substância inflamável e contra o patrimônio público. Pena: 6 meses a 3 anos de detenção, além da pena correspondente à violência. Já a mesma conduta em um contexto da lei de terrorismo tem uma pena de 12 a 30 anos, além da pena correspondente à violência. Ou seja, a pena mínima do terrorismo é 4 vezes maior que a pena máxima do dano.
Percebe a diferença? E ela não é à toa. Um fato isolado é um problema, mas uma conduta sistêmica atinge as estruturas basilares do Estado e da vida em sociedade. O Estado existe para prover, minimamente, uma expectativa de que a vida seguirá o seu fluxo com uma normalidade aceitável e, principalmente, com uma previsibilidade razoável de que a vida, a integridade, o mínimo existencial e a liberdade das pessoas estarão resguardados.
Infelizmente, temos a tendência pouco civilizada e menos ainda eficiente de buscar as soluções fáceis: rapidamente começam os discursos de “vamos matar todo mundo”, “tem que eliminar essa gente” e coisas do tipo. Não demanda maior reflexão para perceber que é um discurso fácil, bastante palatável para muita gente e reiteradamente demonstrado ineficaz.
Inúmeros Estados tomaram medidas criminais duríssimas contra o crime organizado e todos (todos!) falharam miseravelmente. O que se tem percebido é que a ação estatal deve ser mais fundada em inteligência e estratégia do que em força.
É preciso entender do que se trata, de quem se trata, como funciona, quem e como se financia, quais os objetivos, onde estão as forças e as fragilidades. A atividade policial e de repressão estatal, também neste quesito, precisa ser repensada.
Uma análise simples da legislação e do entendimento sobre o sistema de segurança pública deixa evidente que tudo foi pensado para o caso individual e isolado. Ou seja, temos ainda muito a elaborar sobre o entendimento destes fatos como um aspecto de um fenômeno muito maior e muito mais complexo do que uma conduta isolada que se amolda a um tipo penal.
Não por outra razão os resultados estatais contra a criminalidade organizada são absurdamente insatisfatórios. E olha que tem muita gente empenhada em trabalhar contra isso! Entretanto, talvez ainda falte esse olhar sistêmico, interoperante e pautado na tentativa de buscar soluções mais definitivas do que imediatas.
Talvez, tratar as coisas com mais clareza, dando os nomes que elas realmente têm, seja o primeiro grande passo. Depois disso, talvez ajude bastante parar de perder tempo com coisas inúteis, como por exemplo gastar rios de dinheiro e um tempo absurdo do legislativo discutindo com quem as pessoas podem ou não se casar, e começar a pensar em medidas adequadas e eficientes.
Por fim, vale muito a pena parar de ser masoquista político. Nós, como sociedade e como Estado, fazemos exatamente a mesma coisa desde sempre. Não curiosamente, desde sempre dá errado. Como dizem os antigos: errar não é o problema, pois somente dá para saber que deu errado tentando. O problema é persistir no erro sabendo dos resultados. E olha que essa persistência custa vidas, o que é caro demais para agirmos com essa inconsequência.