Era no tio Zé que eu pensava, enquanto a espuma da cerveja se dissipava lentamente à borda do copo. Fazia tempo, ele já não sabia de si. Menos ainda do mundo. Dera de viver, dia sim, dia não, dentro do roteiro convencional. Então, era comum alertar detalhadamente para o vencimento das contas do mês e, manhã seguinte, engatar diálogos que pareciam haver saído de uma caixinha de ilusões. Conversava com o avô, morto décadas atrás, e contava de performances perfeitas em estações de esqui, embora jamais tivesse colocado os pés na neve.
E, culto, emendava frases sobre o preço do pãozinho na padaria com vastas citações em latim. Ouvíamos tudo num misto de desatenção – porque quase nada fazia sentido – e uma ponta de compaixão. Nem sempre fora assim. Era figura festeira, iluminado, daqueles de encher o carro com a sobrinhada pra baixar na praia. Ou erguer barracas de estilo circense nos acampamentos à beira de cachoeiras. E comandar as inesquecíveis festas de Natal. Até começarem a surgir os sintomas.
Me lembro de como choramos quando tia Isaura reuniu a trupe. A atmosfera soava grave. Semblante fechado, ela foi medindo as palavras. Nós não mais que meninos. Mencionou uns “probleminhas” com tio Zé, a estranheza sobre as conversas (inocentemente, notáramos, mas sem ligar os pontos) e, por fim, um detalhe importante da recomendação médica à família: não discutam, não contestem, não polemizem, não discordem, mesmo que pareça repetitivo, chato ou sem qualquer sentido.
O sentimento fundamental diante daquilo, tia Isaura sublinhava, era o da compreensão. Certamente. Mas, idade à frente, foi amadurecendo em mim a convicção de que a alguém assim era preciso às vezes largar a mão do volante, experimentar além dos limites. Dava certo e era bonito em filmes e livros, por que não na real? Foi que, naquela sexta-feira, decidi distraidamente “sequestrá-lo”.
– Opa, pra onde vamos? Supermercado? Igreja? Mineirão?
– Surpresa. Segura aí.
E os olhos dele ganharam um brilho especial, maroto, no instante em que, sem aviso, abri a geladeira de casa. Um time com as melhores cervejas artesanais da cidade. Uauuu!!! Ele deu sinal de sair daquele estado de levitação, franzindo o cenho:
– Mas não vai atrapalhar meus remédios?
Suspirei e chutei a racionalidade pra longe.
– Tio, fodam-se os remédios!! Bora aproveitar! Mas vai ser nosso segredo, hein?!
A cara de espanto migrou pra gargalhada de pura cumplicidade. E atravessamos a noite contando casos, relembrando gente, esquecendo outras, falando coisas sem nexo ou juntando curva acentuada com iogurte grego, pequi com Nova York. Mas como foi bom! Madrugada alta, o devolvi. Tomei o elevador com ele carregado, o coloquei na cama até de sapatos. Dia seguinte, havia se desmemoriado de tudo. Mas uma semana à frente, do nada, saltou a pérola que me criaria um tremendo embaraço durante a visita para o café:
– Vamos beber de novo aquela cervejada?
Meu rosto se alternando entre o vermelho vivo e a palidez de aflição e desconcerto, tia Isaura e Isaurinha, a prima, me fuzilando incrédulas. E tio Zé, num escapismo que suspeito ter sido intencional, me tirou do braseiro:
– Vocês viram como as queimadas cresceram de um jeito inacreditável na Amazônia? Esses loucos vão acabar nos matando sem ar. Vão transformar tudo em deserto.
Terminei de passar a manteiga na torrada em silêncio. Conferi, e ambas ainda não despregavam a mirada de mim. Deixei mais tarde que desabafassem, quase me desintegrassem. Preferi não buscar muitas explicações. Fui pelo caminho simples:
– Ele ficou imensamente feliz.
Aquilo era senha de salvação. Então, elas não implicavam mais nas sextas-feiras em que o recolhia. Impecavelmente alinhado. Terno e gravata. Barba feita. Perfume de casamento. E o meio tom de provocação septuagenária no até logo a tia Isaura.
– Vamos encontrar aquelas louraças?
Uma cerveja, duas cervejas, três cervejas. Na quarta, ele fez pose de congelamento. Eu sem entender. E afastou a garrafa com as mãos. Notei que chorava. Esperei que se refizesse.
– Não tou pronto pra isso.
– Pronto pra quê, tio?
– Não tou pronto pra me encontrar com Deus.
Santa Madalena!! Deus era o nome da cerveja belga que eu reservara especialmente. Como não me dei conta? A que não o melindrasse, preferi não explicar nada. E talvez não fizesse sentido listar a diversidade de aromas, o frutado rico de pera, damasco, maçã verde, as notas de especiarias. Deixasse pra lá. Ele apontou uma outra cerveja e seguimos em frente. Papo longo, relaxado, ora com começo, meio e fim, ora desconexo. Na saída, tropeçando nas palavras, me pediu:
– Não abre essa aí não. Deixa pra minha despedida.
Claro, tio. Sua cerveja tá aqui guardada, intocada, na temperatura ideal pro dia em que se sentir pronto. Que esse tempo demore.
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