Jornal Estado de Minas

Espuma essencial

O surpreendente segredo que há por trás de uma cerveja translúcida

Jornalista, escritor e cervejeiro

Eu confesso: já usei a meia-calça da minha mulher. E talvez tenha errado em não contar a ela. Não imaginam o tamanho da encrenca em que me meti. Verdade é que tinha me esquecido por completo desse episódio, até que chegássemos àquele sábado. Tardezinha. Ela se aprontando pro casamento da Madalena, amiga comum de longa data.

Sandália separada, vestido a postos (era o prata, meu preferido), o perfume pra ocasiões especiais, comprado em nossa primeira viagem ao exterior. Colar, brinco combinando... Quinze minutos pra que não nos atrasássemos.
Eu, àquela altura, finalizando o nó no sapato, a vejo abrindo, fechando e revirando gavetas. Viro o restinho da Apa que tínhamos produzido, coisa de dois meses atrás, e parto pra ajudá-la. Cervejinha da melhor qualidade, feita a dois.

– Ué, amor, não acho a minha meia-calça. Vasculhei em todo cantinho e cadê? Não vou com essas pernas assim desprotegidas.

Eu, então, me juntei à procura. Conferi em meu armário, garimpei no dela. Nem sinal.

– Mas não pode ter sido assim do nada, meu bem. E nem fomos a festas nos últimos meses.
Onde é que você pode ter enfiado essa peça?

O tempo passando, ela chegando ao limite da paciência, e foi aí que me dei conta. Putz! Contava ou não contava? Contei.

– Amor, briga comigo não...

Ela me mirou, assim sem entender.

– Eu usei a sua meia-calça...

O timbre era de confissão seca, embalada num pedido de desculpas. Aqueles olhos castanhos me enquadraram, num misto de estupefação e quase desamparo. Ela se assentou, como quem fosse desabar. Escondeu o rosto entre as mãos, até desdesenhando um pouco a maquiagem delicada. Se virou com ares de quem não acredita e carregou em cada sílaba daquela frase, me emparedando.

– Você o quê? Você usou a minha meia-calça? Como assim?

– Eu ia te contar e esqueci...

– Se esqueceu? Simples desse jeito? Só isso? Fala como se tivesse deixado de trazer o pão ou de ter comprado a manteiga. Ah, não... O que mais você tem a me revelar? Por que nunca falou sobre isso?

Agora era eu quem se punha espantado.

– Peraí, peraí...
Você tá pensando que....

– Sabe, amor...

Ela balbuciava e as órbitas marejavam, abrindo caminho por entre a base neutra que escolhera tão bem pra combinar com o tom da sombra.

– Eu te amo incondicionalmente.

– Eu também te amo incondicionalmente. E juro que tou sem entender esse choro.
Ela ficava, creiam, ainda mais bonita com aquela expressão de fragilidade.

Entrelaçou seus dedos aos meus, buscou fôlego. E engatilhou a pergunta cercada de incerteza.
– E como vai ser daqui pra frente?

Acreditem, tive um acesso de riso.

Ela, literalmente, se descabelando, desarmando o penteado que fizera pro casamento.
– Baby, baby, baby. Tou rindo assim porque sei que vamos ficar juntos até você enjoar de mim. Até que rejeite todas minhas cervejas. Até que quebre em mil pedaços toda a minha coleção de growlers e garrafas.

– Mas não acha que tenho o direito de saber a razão de ter usado minha meia-calça?
– Ah, a meia-calça, a meia-calça...

Fiz uma pausa, e aquilo só aumentou o ar dramático da situação que, para mim, era banal.
– Nós bebemos sua meia-calça.

– Bebemos? Como assim?

– Lembra daquela Vienna Lager que ficou translúcida e te deixou de queixo caído? Pois é... Usei a sua meia-calça no processo de filtragem.

Ah, louvado fosse! Os braços dela se cruzaram em meu pescoço, como se comemorasse um gol do time preferido.

Entre um “te amo” pra cá, um “te amo” pra lá, encaixei a proposta:

– Que tal a gente produzir uma cerveja amanhã? Você escolhe o estilo.

– Ih, acho que não vai dar não...

Eu sem compreender, mas, sabe-se lá por quê, me apercebendo de um certo ar de vingança casual, dessas traçadas pelos deuses. Ou pelas deusas.

– Lembra da bombinha de circulação que te perguntei na semana passada, amor? Peguei emprestada pro aquário novo....

Esta coluna é publicada quinzenalmente eduardomurta.mg@diariosassociados.com.br

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