Étienne de la Boétie escreveu Discurso sobre a servidão voluntária, em pleno século XVI, e teve como fonte de inspiração o conflito entre o povo francês e o rei. O ser humano está sempre a criar vínculos de dependência, expressados, em sua essência, em armadilhas de servidão. A busca pela liberdade nas sociedades contemporâneas obriga os indivíduos a criarem amarras constantes. Os tecidos sociais e os arranjos econômicos constroem-se sob verdadeiras teias e amarras que induzem os indivíduos à ilusão de viverem a liberdade.
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Os perigos por trás dos resultados das pesquisas de percepçãoMulheres, as barreiras estão aí para serem rompidas!Carta aberta aos formuladores de políticas públicasCOVID-19: Quanto teria custado manter as aulas do ensino público em 2020?Os efeitos silenciosos da pandemiaDo negacionismo ao efeito Tostines: acorda, Brasil!A pandemia da COVID-19 tem servido, cada vez mais, para escancarar nossas dependências e buscas por “salvação”. Tirando o efeito subjetivo que faz do ser humano eterno dependente de laços, tem sido depositado nas lideranças a esperança de sobrevivência. Como preconiza Boétie, é pela postura do homem na sociedade que se define essa mesma sociedade.
No Brasil, temos vivido a pior fase da pandemia, até o momento, e o mesmo legislativo, que no ano passado aprovou um auxílio emergencial de R$ 600 mensais para pessoas vulneráveis aos efeitos da pandemia, enterrou, no último dia 25/3, a principal pesquisa do país capaz de subsidiar governos e pesquisadores na elaboração de políticas públicas: o Censo Demográfico do Brasil.
O censo é realizado decenalmente e possibilita conhecermos a estrutura etária da população brasileira, bem como suas características socioeconômicas – educação, saúde, condições de moradia, arranjos familiares etc. A partir da nova contagem populacional, realizam-se projeções populacionais que se prestam a diversos fins.
Para se ter dimensão mais clara da relevância dessa pesquisa, é a partir do Censo Demográfico que o país calcula o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), métrica universal construída pelas Nações Unidas que permite comparar os estágios de desenvolvimento socioeconômico entre as economias mundiais. O Censo também é a melhor ferramenta para se desenhar politicas para mercado de trabalho, saneamento, habitação, educação, gênero, raça, cor, dentre outras.
No último 22/3, considerado Dia da Água, foram realizados webinars, lives, relatórios e grandes mobilizações em defesa do uso adequado desse bem e de questões climáticas de sustentabilidade. No Brasil, concernentes ao uso da água, encontram-se aspectos sanitários como a qualidade e a abrangência da oferta desses serviços no país, sintetizados em quatro indicadores definidos no Plano Nacional de Saneamento Básico.
Desde 2010, em que tivemos as últimas estatísticas mais completas sobre saneamento, oriundas do último Censo Demográfico, os dados disponíveis até então são do Sistema Nacional de Informações Sanitárias - Snis, que coleta informações autodeclaradas dos prestadores de serviços; tivemos também, em 2019, exemplar temático realizada junto à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad, que como o próprio nome diz, refere-se a dados amostrais.
O descaso dos representantes públicos com estatísticas e planejamento custará caro ao Brasil. A pandemia está aí entrando em nossas casas e a sociedade continua se colocando em papel de servidão voluntária. Segue aguardando que seus representantes sejam capazes de lhes garantir liberdade, direitos de vida digna, condições sanitárias mínimas, emprego, atendimento à educação de crianças e jovens e políticas sociais que reduzam as disparidades sociais.
Voltando à arte que, no fundo, parece-me o maior nutriente para olhar o mundo e ter esperança, deixo aqui um breve relato de uma experiência que vivi nos idos de 2000. Fui consultora, durante alguns anos, do casal Paulo César Saraceni e Ana Maria Nascimento Silva. Paulo, cineasta e criador, juntamente com Glauber Rocha, do chamado Cinema Novo, e Ana Maria, sua esposa, atriz e produtora, me propiciaram inesquecível convivência, para muito além do trabalho. Paulo foi colega de Bernardo Bertolucci no Centro Experimental de Cinema de Roma, tornaram-se amigos e trabalharam juntos em alguns momentos de suas vidas.
Paulo e Ana me narraram, em ocasiões diversas, como Bertolucci ficava “intrigado” com o fato de Europa e Estados Unidos gastarem mais de um ano no planejamento e início da produção de um filme enquanto, no Brasil, em alguns meses fazia-se tudo isso, no modo “junto e misturado”.
De Paulo, guardo o único exemplar que ele mesmo tinha de seu livro (Por dentro do cinema novo: minha imagem), de Ana Maria, a estonteante beleza e irreverência, e, de Bertolucci, que não conheci, a triste e real percepção de que o Brasil não consegue entender a importância e urgência de se ter planejamento. Tudo isso possível, até os dias de hoje, por sermos uma sociedade submetida cegamente à servidão voluntária descrita em Boétie.