Carolina Maria de Jesus, moradora da antiga favela do Canindé - transformada, ainda nos idos de 1960, na famosa Marginal Tietê, tinha o segundo ano primário completo realizado no interior de Minas Gerais e usava o recurso da escrita como antídoto contra a falta de comida e a luta diária pela busca de dinheiro e alimento para sua sobrevivência e de seus filhos.
Negra, mãe solteira de três filhos e catadora de papel e do que mais encontrasse nas ruas para vender ou trocar por comida, escreveu um diário que veio a se tornar um livro. ''Quarto de despejo'' é o relato dessa mulher que, além de pobre (miserável, para usar a palavra mais adequada), era chefe de família e vivia desafios diários de sobrevivência impostos de forma violenta. Em alguns momentos, não há como não chorar ou sentir falta de ar ao ler "Quarto de despejo".
No início da década de 60, os filhos de Carolina não tinham condições de romper com o ciclo de pobreza em que estavam envolvidos. Nos dias de hoje, seis décadas depois, a situação ainda persiste. O último levantamento mais amplo sobre as características socioeconômicas por cor ou raça no Brasil refere-se ao ano de 2018, embora alguns dados cheguem até 2021, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Muito embora a população brasileira preta ou parta corresponda a 54,4% da população total, sua representatividade é muito menor em indicadores de acesso a melhores oportunidades. Em 2018, representavam apenas 24,4% dos quadros legislativos federais e somente 29,9% de cargos gerenciais no mercado de trabalho em geral.
No primeiro trimestre de 2021, pessoas de cor preta e parda recebiam 56,7% do rendimento médio auferido pelas brancas, além de serem sensivelmente mais afetadas pela pandemia da Covid-19: taxas de desocupação (desemprego) de 18,6% (pretas) e 16,9% (pardas), expressivamente superiores àquelas experimentadas pelas brancas (11,9%).
Por trás da acintosa diferença das taxas de desemprego, residem as causas da reprodução do ciclo intergeracional da pobreza: em 2018, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas e pardas de 15 anos ou mais de idade era quase três vezes a das brancas.
O reflexo se dá diretamente nos indicadores de pobreza: 32,9% da população preta e parda, em 2018, vivia com menos de vinte e oito reais por dia; já na população branca, esse percentual era de 15,4%. Para a linha de pobreza dos extremamente pobres, que considera renda diária de R$9,50, as diferenças acentuam-se ainda mais: 8,8% da população preta e parda viviam com menos do que esse valor diário, ante 3,6% da população branca.
Para fechar o panorama geral, as estatísticas de violência não colaboram. Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídio de pessoas brancas, entre 15 e 29 anos de idade, praticamente não se alterou, mas entre as pessoas pretas e pardas sofreu aumento de quase 10%. No comparativo entre os níveis dessas taxas, em 2017, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca.
Há dez dias, o país viveu mais um episódio de violência. Não se tratou de homicídio, mas, sim, de preconceito, de revelação de uma cultura incutida dentro do inconsciente coletivo de um país que evita encarar seu racismo. A bicicleta elétrica roubada da jovem loira no Leblon não era a mesma de propriedade do jovem negro Matheus, mas parece tratar-se daquela que estava sendo usada, nos últimos dias, por um rapaz branco residente de um bairro da Zona Sul carioca.
No dia 22 de junho, há quase seis décadas, Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário:
“Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom...Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao da minha saudosa mãe. E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!”
Hoje, 22 de junho, eu, brasileira, branca, com nível de escolaridade superior, pude escrever essas linhas sentada na cadeira do meu escritório, grata por toda sorte que a vida me proporcionou em exatos 54 anos de vida. Entre a minha história e a luta por sobrevivência das Carolinas e dos jovens Matheus negros reside intransponível abismo. A fome e a sede de viver parecem ter cor.