Jornal Estado de Minas

EMPREGABILIDADE

Programas sociais atuam como 'tapa-lacunas' do mercado de trabalho


A seção Pipeline Mercado do jornal Valor Econômico trouxe, nesse último sábado, 28, uma questão que tem intrigado especialistas americanos: o apagão de mão de obra. Faltam trabalhadores para o setor de alojamento e alimentação, transporte e tantos outros, apesar de ainda haver contingente de nove milhões de desempregados (5,4% da força de trabalho disposta a trabalhar) em plena retomada da atividade econômica. O que os especialistas ainda não conseguiram perceber?
 
 

No dia de hoje, 31/8, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulga os resultados da sua pesquisa de desemprego - PnadC, desta vez com dados regionais que permitem melhor fotografia do desemprego no país. Na última sexta, o Ministério da Economia divulgou os dados do emprego formal - Novo Caged, informações baseadas nas declarações do eSocial -, indicando, mais uma vez, saldo líquido positivo de contratação de pouco mais de 316 mil trabalhadores, no mês de julho. 




 
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O resultado foi positivo em todos estados do país, com destaque municipal para as cidades de São Paulo e Belo Horizonte. O ponto negativo ficou por conta da queda no valor médio dos salários, comparativamente ao mês anterior, descontados os efeitos inflacionários. 

Há algo de obscuro no entendimento das flutuações recentes no mercado de trabalho brasileiro e suas razões remontam ao início da crise econômica de 2015. Ao que tudo indica, os novos entrantes no mercado de trabalho estão pagando o preço do estoque de pessoas desempregadas, com quedas reais nos rendimentos. Talvez, ainda por essa razão, que a reabertura recente dos estabelecimentos comerciais venha se dando com déficit de mão de obra - não tem sido incomum avisos/placas de contratação de mão de obra na porta dos estabelecimentos -, fenômeno equivalente ao ocorrido nos Estados Unidos.

As condições ofertadas não devem estar trazendo ganhos para além dos monetários. Nesse ponto, o benefício estendido do governo federal, como ampliação do Programa Bolsa Família, e a adesão à Regra de Permanência, em vigor desde 2010, podem dar boas pistas para se entender a "resistência" dos desempregados ou desprovidos de renda em aceitarem empregos formais com remunerações muito baixas. 





Na recente avaliação produzida pelo Banco Mundial com apoio da Agência Francesa de Desenvolvimento - Equilibrando estabilidade e transição: primeira avaliação da Regra de Permanência no Programa Bolsa Família -, 72% dos adultos do Bolsa Família com potencial para trabalhar estavam alocados em empregos de baixa qualidade, no ano de 2019. Evidência antecedente ao relatório do Banco Mundial indica que o Bolsa Família aumenta em três pontos percentuais a probabilidade de um graduado do programa conseguir emprego formal.

Do total dos 14,3 milhões de beneficiados pelo Bolsa Família, somente 1,7 milhão encontrava-se na Regra de Permanência, grupo na qual se incluem famílias que puderam permanecer por mais dois anos no programa, desde que a renda familiar per capita não ultrapassasse meio salário mínimo. 

A ideia da Regra de Permanência é garantir que as famílias consigam, nesses dois anos, manter o desenvolvimento em capital humano de suas crianças e se inserirem no mercado formal sem se sentirem prejudicadas pelos ônus legislativos que, em um primeiro momento, possam sugerir "descontos" financeiros. Trata-se de um trabalho de conscientização financeira que, segundo o estudo do Banco Mundial, é uma das partes falhas do programa. 





Apesar dessa evidência, o relatório do Banco Mundial apresenta sinais de avanços trazidos pela Regra de Permanência: a renda familiar total aumenta, em média, de forma expressiva quando os beneficiários conseguem ingressar no setor formal, passando de R$ 356 para R$ 1.235. Outros efeitos positivos, tais como a redução no tempo do trabalho doméstico para as meninas, no curto prazo, e a inserção dos meninos em trabalhos formais, no longo prazo, são dois destaques.

A atuação para além da concessão do benefício é tarefa fundamental em todos programas sociais, via de regra, mas acaba por ser negligenciada. Cada vez mais se fazem necessários estudos de monitoramento e avaliação com recomendações que impliquem os gestores dos programas na atuação na ponta.

Os benefícios do Bolsa Família se dão no mesmo país onde persistem trabalhadores com condições análogas ao trabalho escravo. Na data de 23 de agosto, as Nações Unidas comemoram o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e a Abolição. A data tem origem na revolta dos escravos na ilha de São Domingo, nos dias 22 e 23 de agosto de 1791, e deu início à extinção do trabalho e do tráfico transatlântico de seres humanos.





As estatísticas oficias do período democrático indicam que, no Brasil, fiscais do trabalho fazem inspeções e desmontes de trabalhos análogos aos de escravos desde 1995. De lá até meados de agosto de 2021, foram encontrados 56.021 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Nos primeiros anos, os números eram bem expressivos, mas não deixam de assustar até os dias de hoje. Do total, 76% encontravam-se na zona rural e os demais, 24%, na urbana. O estado de São Paulo é o maior responsável pelos casos urbanos, enquanto Minas Gerais e Pará respondem pelos maiores números rurais.

É inconcebível o país ser palco de tantas formas de violência contra a dignidade humana. Em uma perspectiva de curto prazo, o cenário exige mudanças práticas urgentes. Enquanto ainda vivemos o combate ao trabalho em condições análogas à escravidão e não investimos seriamente no avanço do ensino capaz de promover ganhos de capital humano e de produtividade, continuam sendo necessárias políticas sociais mais intervencionistas para suprirem lacunas deixadas pela inequidade social e baixa qualidade da escolaridade. 

A fratura exposta das condições frágeis do trabalhador não dá sinais de regeneração. A concentração do capital segue firme e forte, as disparidades se mantêm e os saltos tecnológicos servirão a poucos. Os programas sociais precisam realmente ser repensados para darem conta de suprir o que o "mercado" não está disposto a corrigir. 

Nunca o Estado democrático precisou tanto usar sua mão visível para corrigir distorções que o sistema produtivo insiste em perpetuar. Amanhã teremos o resultado do PIB do segundo trimestre do Brasil; não dá para comemorar possível marolinha.




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