Dois jornalistas, Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitri Muratov, da Rússia, foram os vencedores do Nobel da Paz em 2020. Os laureados têm em comum a busca pela verdade, por meio da construção da imprensa independente e ativista, e pelo fato de sofrerem graves perseguições de seus governos pelo incansável trabalho denunciante, em busca da justiça e da paz. Somente a atuação jornalística ética é capaz de vencer restrições à liberdade de imprensa, combater fake news e preservar as estruturas políticas democráticas. Do contrário, as sociedades caminham rumo ao mundo paralelo terraplanista.
Em 2010, todo o mundo, exceto os Estados Unidos, beneficiou-se das publicações feitas pelo fundador do site Wikileaks, Julian Assange. À época, foram divulgados milhares de documentos confidenciais do governo norte-americano sobre sua atuação no Iraque e no Afeganistão. Julian Assange conseguiu abrigo na Embaixada do Equador, em Londres, por sete anos. Seu site, Wikileaks, ficou conhecido por “hackear” valiosíssimas informações confidenciais. O jornalista segue preso em Londres.
O jornalista Gleen Greenwald foi ganhador do Pulitzer, maior prêmio de jornalismo dos Estados Unidos, com a revelação de dados confidenciais, recebidos de Edward Snowden, sobre os programas secretos de vigilância global realizado pelos Estados Unidos. Greenwald fundou o jornal americano The Intercept, em 2013. No Brasil, Greenwald liderou a operação Vaza Jato, maior denúncia jornalística política do País, que trouxe à tona o desmonte de grande parte da Operação Lava Jato. O jornalista sofreu várias ameaças de morte.
Em 2016, a operação Panamá Papers, promovida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos e o jornal alemão Süddeutsche Zeitung, levou a público o resultado do acesso a cerca de 11,5 milhões de documentos oriundos do escritório Mossack Fonseca, responsável pela criação de offshores em vários locais do mundo e com sede no Panamá. Os dados revelados denunciaram a criação, ao longo de 40 anos, de 214 mil empresas (de fachada) offshores em mais de 200 países e envolvendo chefes de Estado, ministros e parlamentares de vários países.
No início do outubro do ano corrente, quase cinco anos após o vazamento dos dados do Mossack Fonseca, veio a público outra grande investigação da mesma natureza: a Pandora Papers. Novamente liderada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, a Pandora Papers contou com a colaboração de várias instituições jornalísticas da América Latina e, no Brasil, contou com a participação de jornalistas do El País, da Agência Pública de jornalismo investigativo, do digital Poder 360, da Revista Piauí e do portal Metrópoles.
Mais ampla que a Panama Papers, a investigação Pandora Papers teve acesso a documentos de 14 escritórios especializados na abertura de offshores e contou com a colaboração de 600 jornalistas investigativos que se debruçaram sobre o vazamento de dados de mais de 27.000 companhias abertas entre 1971 e 2018. Foi essa operação que revelou as empresas do atual Ministro da Economia, Paulo Guedes.
Mas não só de jornalismo investigativo e imprensa independente têm vivido o mundo que busca combater fake news e estados ditatoriais. Entre o último trimestre de 2018 e o primeiro de 2019, em algumas cidades do Brasil, foi apresentada a exposição Raízes, do artista plástico chinês e grande ativista dos direitos humanos Ai Weiwei. Filho do poeta Ai Qing, que, por suas críticas ao Partido Comunista chinês, na época do governo Mao Tsé-tung, foi obrigado a viver com sua família em campo de trabalho forçado no noroeste da China, Ai Weiwei seguiu os passos do pai e tornou-se grande defensor de causas humanitárias.
Na exposição Raízes, ao menos quatro temáticas foram retratadas de forma impactante: (1) a prisão de Ai Weiwei, pelo exército chinês, por denunciar a morte de mais de 5.000 crianças em uma escola construída com materiais de baixa qualidade, na província de Sichua, na China, após grave abalo sísmico na região; (2) a expropriação da individualidade por meio do trabalho coletivo massivo e sem identidade; (3) a situação dos refugiados em busca de abrigo na Europa; e (4) os dados vazados pelo ex-agente da Agência de Inteligência Americana e um dos integrantes do Wikileaks, Edward Snowden.
Outras formas de expressão artística também têm se prestado ao combate às fake news, à repressão e ao autoritarismo. De 2019 para cá, destaco dois documentários importantes que começam a trazer mais luz aos perigos que as redes sociais têm, cada vez mais, exposto as sociedades democráticas. Nada é privado: o escândalo da Cambridge Analytica trata da utilização não autorizada de dados pessoais dos usuários do Facebook, extraídos pela empresa Cambridge Analytica, para influenciar as eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 2016. Nesse documentário podemos ver a importância da participação de Steve Bannon na eleição do presidente Donald Trump e a omissão da empresa Facebook.
O segundo documentário, O Dilema das Redes, é também investigativo e aponta para os perigos dos algoritmos construídos para “manipular” os usuários das redes sociais. Ambos documentários trazem relatos de especialistas que trabalharam em grandes grupos como, Facebook, Instagram ou mesmo Cambridge Analytica, além de professores de renomadas universidades e mostram como as sociedades democráticas estão vendo seus sistemas políticos fragilizados e tensionados pela perigosa influência e poder de manipulação das empresas de redes sociais sobre seus usuários.
Ainda na semana passada, a ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, depôs no Congresso americano, levando graves denúncias da conduta antiética daquela rede sobre o bem-estar social. Segundo Haugen, Facebook utiliza política de construção de algoritmos capaz de aumentar a interação social às custas da disseminação de discursos de ódio entre famílias e amigos, da exposição de conteúdos sobre anorexia aos adolescentes, da violência étnica etc.
A imprensa independente tem se mostrado, cada vez mais, como o caminho mais importante para se combater o crescimento do autoritarismo, da China aos Estados Unidos. Artistas-ativistas incansáveis também têm sido antídoto contra aberrações que o mundo contemporâneo vem expondo seus indivíduos. De um lado, tem-se grupo de pessoas corajosas lutando por liberdade, justiça, verdade, democracia e bem-estar social. Do outro, o poder econômico das redes sociais, cada vez mais ávido por lucros e crescimento, ganhando espaço, em parte, com a promoção latu sensu da violência e do agravamento da saúde mental.
Neste domingo, o jornal El País lançou nova campanha contra o obscurantismo e pela divulgação da verdade. “Porque si somos más, la oscuridad es menos” é representada por um indivíduo que tenta apagar cada vela acessa até conseguir deixar tudo escuro. Segundos depois, surgem várias pessoas, cada uma com uma vela acessa na mão, trazendo luz ao ambiente antes escurecido.
Nesse jogo de acende e apaga, todos estamos saindo um pouco queimados. Boa parte do capital que nutre a disseminação da informação nas sociedades tem fragilizado as relações interpessoais, deteriorado a saúde mental das crianças e jovens, bem como a dignidade e o bem-estar coletivos. O Nobel da Paz dado aos dois jornalistas-ativistas é oportuno gesto para sensibilizar os poderosos meios de comunicação na luta contra o obscurantismo. Que a grande imprensa brasileira reflita sobre seu papel e suas relações de dependência com o capital público e privado, tão nocivas à maioria da população. Que seus “engajamentos” não se deem pela via da violência, e sim pela promoção da paz!