Entramos no ano de 2022 cientes de que, em breve, seremos invadidos pelas discussões eleitorais presidenciais, estaduais e, parcialmente, legislativas. A eleição presidencial norte-americana nos faz crer que, por aqui, o jogo antidemocrático também nos ameaçará. Para além desse desgaste e corrosão nas estruturas sociais, algo de muito mais grave perpetra e assombra nossa evolução histórica: a permanência de nossas raízes desiguais.
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O ideal seria pularmos 2022O que o Brasil celebrou no dia dos direitos humanos (?)Saúde mental e educação: o otimismo precisa vencerUm carnaval sem fantasia, mas de máscaraO diálogo entre ONU e Vaticano: a solidariedade no contexto antropocenoO negacionismo levou a educação brasileira para a UTI“Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os homens derramando sangue para destruir sonhos. Vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou o próprio corpo por não querer ser mais cativa de seu senhor. Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos. (...) Mulheres que enlouqueceram porque as separaram dos filhos, que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisessem expurgar o mal que o fazia cair.”
Esse trecho, extraído da última parte do livro ''Torto arado'', é narrado pelo “cavalo”, instrumento de linguagem que abarca a obra e, muitas das vezes, deixa-nos perplexos pela riqueza e força das narrativas. Ali temos a visão ampla das injustiças sociais que perduram em nosso tempo, mesmo que tenhamos tantas figuras ilustres em nossa história e que nos fazem ter orgulho de encontramos, em meio a povo fraco e submisso, motivo e orgulho para acreditar que, devagar e sempre, a sociedade vai rompendo com suas raízes fincadas em terrenos sórdidos.
“7 Prisioneiros” foi lançado em novembro de 2021 pela Netflix. Trata-se de filme impactante pela dureza das cenas e, sobretudo, do roteiro que tem como ideia central a busca de Mateus (Christian Malheiros ) e alguns amigos, todos jovens, por melhores condições de vida. Convidados a saírem do interior e migrarem para São Paulo com a promessa de “ganhar a vida”, ao chegar lá, deparam-se com uma armadilha e se veem forçados, por meio de seu captor Luca (Rodrigo Santoro), a viver em condições de trabalho análogas à escravidão.
Enquanto "7 Prisioneiros" narra promessa de vida melhor que desemboca em uma armadilha para trazer jovens do interior e viverem presos em condições análogas à escravidão, "Torto arado" nos faz lembrar de um passado que deu origem e permitiu que, até os dias de hoje, as armadilhas sociais, no Brasil, perpetuem a origem da formação desigual e injustiça do Estado brasileiro.
Neste último final de semana, veio a público a história de dois jovens indígenas de 15 e 19 anos de idade que, conduzidos por um pastor e sua esposa, com a promessa de ajudá-los a estudar, tiraram-nos de sua aldeia, às margens do rio Curupi, em Paragominas, e levaram-nos para Porto Grande, onde foram mantidos em regime de trabalho análogo à escravidão, além de passarem fome e outra sorte de explorações.
Para além da escravidão e as injustiças sociais que atingem diretamente cerca da metade da população brasileira, por ser negra e indígena e originária de piores condições de partida na conquista de melhores espaços sociais, o País também nega, até o momento, a dívida social que a ditadura trouxe para nossa sociedade.
“Fica decretado que agora vale a verdade/ agora vale a vida/ e de mãos dadas/ marcharemos todos pela vida verdadeira". Extraída do poema “Os estatutos do homem”, do recém-falecido Thiago de Mello, o País tenta, por meio da arte escrita, cantada, desenhada etc., sensibilizar e driblar os entraves para rompimento das desigualdades e injustiças.
"Faz escuro mas eu canto” foi o tema da 34ª Bienal de São Paulo, realizada em 2021, fazendo alusão a um verso extraído do poema “Madrugada camponesa”, também de autoria de Thiago de Mello. A curadoria escolheu o tema como forma de reconhecimento e reivindicação da arte como espaço de manifestação e resistência, assim como de possibilidade de ruptura e transformação dos sujeitos e grupos sociais. Não são poucos os esforços nesse sentido, mas ainda vivemos sob apatia social secular.
Essa apatia é bem colocada por Margarida Genevois, hoje com 90 anos, mas ainda ativa na luta por direitos sociais. Atualmente presidente de honra da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, Margarida afirmou, em entrevista ao jornal Valor Econômico, dia 14/1, que os jovens da atualidade “foram educados de forma muito individualista, muito voltada para o sucesso, para o que dá mais dinheiro. Valores morais, não sei se os pais ensinaram direito”.
Vale lembrar que, Margarida Genevois fez parte da equipe responsável pela juntada de documentos que culminou na mais ampla pesquisa sobre tortura no Brasil, a obra “Brasil: nunca mais”, organizada sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns, de quem Margarida tornou-se, além de braço direito, a primeira mulher representante de um arcebispo.
A diplomata norte-americana Gina Abercrombie-Winstanley, atualmente chefe de Diversidade e Inclusão do Departamento de Estado americano, cargo recém-criado pelo governo Biden, começou um giro internacional pelo Brasil no início de 2022 e trouxe uma pergunta que ecoou em vários espaços: “estou entre brancos; cadê o resto?”
Enquanto não enfrentarmos nossos problemas estruturais, originários na formação do Estado brasileiro, não seremos capazes de decolar. A China vem fazendo, há algumas décadas, investimento em ciência, tecnologia e educação básica, e definiu programa ambicioso para redução das disparidades de renda. Nossos problemas não serão minorados se mudarmos de governos, mas mantivermos, como há séculos, o jogo de forças e interesses prevalecente.
2022 chega com eleições e desarticulações graves! Cada lado tentará contar sua história de salvação, mas o fato é que com a pandemia e a falta de política econômica clara, conseguimos encontrar fosso maior nos últimos anos. Os desafios serão de décadas! Dada nossa trajetória histórica, difícil crer que não continuaremos seguindo o fluxo passivo de Nação conformista, passiva, cujos ecos da arte não têm sido capazes de transformar os sujeitos em atores de sua própria narrativa. Mesmo assim, pelo pulsar pela vida, em analogia a Thiago de Mello, “faz escuro, mas eu escrevo”.