O ingresso do mundo no terceiro ano da pandemia, embora ainda em alerta pela variante Ômicron, traz esperança de superação gradual, mesmo que desigual, da evolução das sociedades na retomada de suas dinâmicas. No entanto, o estrago será grande independentemente do nível de desenvolvimento socioeconômico das Nações: saúde mental, déficit educacional e recomposição do mercado de trabalho certamente serão os principais alvos de investimento.
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''Faz escuro mas eu canto'' deveria virar mantra para sobrevivência O ideal seria pularmos 2022O que o Brasil celebrou no dia dos direitos humanos (?)A requintada autocracia é o maior risco à democracia Sem estatística não contamos nossa história: que venha o Censo!Causa de liberdade: a mais nobre para as mulheresUm carnaval sem fantasia, mas de máscaraO diálogo entre ONU e Vaticano: a solidariedade no contexto antropocenoVladimir Safatle, professor titular do Departamento de Filosofia e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, publicou, na Revista Cult, o artigo "Os dois tempos de uma análise", trazendo abordagem de Theodor Adorno sobre o adoecimento psíquico construído dentro das sociedades: "a consciência clínica de que adaptar sujeitos a uma sociedade doente seria apenas uma forma mais cruel de adoecê-los".
Safatle explica que a sociedade doente se revela pelo funcionamento dito normal daquilo que ela mesma considera "patológico". A sociedade, nas palavras do filósofo, "fortalece seus vínculos sociais, suas relações de poder, fazendo o que é "patológico" funcionar, fazendo-lhe produzir trabalho, valor, instituição social, afetos, vínculos".
Nesse sentido, não é tão simples compreender que a normalidade é ingressar em dinâmica social que busca automatizar as formas de se relacionar, seja afetiva ou profissionalmente, naquilo que Freud definiria como amar e trabalhar a partir de uma sociedade capitalista que empurra sujeitos para formas de mutilação. E se o adoecimento social nas sociedades capitalistas já vinha se intensificando, com a pandemia ele foi desmascarado.
Na comemoração do Dia Internacional da Educação, em 24/1, promulgado há quatro anos pela Organização da Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) divulgou que 258 milhões de crianças e jovens ainda não frequentam escola; 617 milhões não sabem nem ler nem fazer contas básicas; e aproximadamente 4 milhões de crianças e jovens refugiados estão fora da escola. Especificamente em relação ao Brasil, em vários estados, 75% das crianças da segunda série do ensino fundamental estão atrasadas com a leitura, enquanto 10% dos jovens, entre 10 e 15 anos, não pretendem voltar às aulas presenciais.
Em 1991, Ricardo Paes de Barros (PB, como é chamado) e eu produzimos, para o Unicef-Brasil, estudo sobre as consequências de longo prazo do trabalho precoce que, em última instância, evidenciava a reprodução intergeracional da pobreza. Em três décadas, as políticas públicas sociais não foram capazes de manter os jovens na escola - a evasão escolar no ensino médio manteve-se elevada e com a pandemia, acentuada, e os ciclos intergeracionais perpetuados.
Em entrevista concedida semana passada, PB enfatizou, mais uma vez, a perda da oportunidade de se redesenhar a política de concessão de benefício com a criação do Auxílio Brasil. Para PB, seria uma boa chance de se corrigir distorções que tratam diferentes como iguais e que não criam nenhum tipo de incentivo para o jovem continuar na escola: "O que precisamos fazer como sociedade brasileira é descobrir quem está fazendo educação de alta qualidade para pobres. E tem gente muito boa, no Brasil, ensinando muito bem aos pobres, em nível europeu, como mostram Cocal dos Alves e Apiaí" - dois municípios de excelência em matemática e português nos exames do Programa Internacional de Avaliação dos Estudante (Pisa).
Enquanto o setor público vem, há décadas, ignorando seu papel de provedor de educação de qualidade, o País tem perdido espaço no ambiente internacional e o adoecimento psíquico social se nutre da falta de estímulo e do desamparo. Nesse vácuo, cada vez mais instituições sem fins lucrativos, oriundas do setor privado, vêm ocupando espaço que deveria ser de honra do setor público. Exemplo recente e louvável é do Todos pela educação, com a criação do programa Compromisso com a Educação, iniciado no ano passado (2021).
A ideia do programa é sensibilizar gestores públicos municipais sobre a importância de priorizar a educação básica durante os quatro anos de gestão. Incrível como as instituições e fundações privadas sem fins lucrativos, voltadas para a educação, fazem esforço hercúleo para atuar junto às Secretarias de Educação e levarem sementes para fazerem vingar a raiz das melhores práticas na educação.
O atraso do Brasil em entender as desmotivações das crianças e jovens exige, obrigatoriamente, que educadores, formuladores de política e gestores municipais, estaduais e federais repensem urgentemente o futuro da educação básica brasileira. Certamente algo tem dado muito errado e os desestímulos e déficits educacionais são de grande responsabilidade pública.
A Unesco acaba de lançar o Reimagining our futures together: a new social contract for education (Reimaginando nossos futuros juntos: um novo contrato social para educação), documento que tem a intenção de desenhar como deve ser a política educacional global até 2050. Partindo de cinco propostas, o documento da Unesco é também um manual de boas práticas para um futuro inclusivo, colaborativamente empreendedor, transformador, cooperativo e solidário. Alunos devem se beneficiar de aprendizados interculturais e interdisciplinares; professores devem ser figuras-chave na transformação social e educacional.
A educação deve caminhar objetivamente para a inclusão, o respeito, a cooperação, a diversidade, a igualdade, o estímulo às aptidões e habilidades inatas, mas tudo isso só será possível se os Estados e seus servidores públicos entenderem que precisam estar verdadeiramente compromissados em educar suas crianças e jovens. Recurso não é exatamente o problema, mas sua má alocação certamente o é.
Por enquanto, a defesa retrógrada e inconsistente dos discursos sobre meritocracia só nos remete ao discurso astuto do crescer para depois distribuir. O mundo capitalista, sobretudo nos países menos desenvolvidos, se beneficiou desses discursos para reforçar sua rede de exploração, acúmulo de lucros e distorções no sistema capitalista. Tratem desiguais como desiguais, reduzam abismos sociais, não tenham medo da competição, das diversidades de gênero e raça, da potência humana. O medo só destrói as relações afetivas e profissionais.
O adoecimento social só tem servido para construir, além de um exército cada vez maior de desalentados, a falsa ilusão de que o sistema tem falhas e precisa ser corrigido, embora seus princípios sejam soberanos. Às favas com a soberania tirana que é capaz de assassinar o surfista Wellington Reis, que, em 2015, aos 13 anos de idade, tornou-se campeão brasileiro de surfe, mas faleceu há 2 semanas, na condição de morador de rua - alcançada pela falta de incentivo e patrocínio para continuar na atividade que tinha habilidade inata e condição de romper com seu ciclo intergeracional de pobreza.
Há quantas décadas não queremos perceber que nosso sistema educacional também faleceu dentro das estruturas de nossos grupos escolares, colégios e secretarias de educação? Essa mesma sociedade adoecida que tornou Wellington Reis invisível foi capaz de deixar o fotógrafo suíço René Robert caído inconsciente na rua, em região bem movimentada da noite parisiense, ao ponto de morrer de hipotermia. Ambos morreram com diferença de quatro dias e com a distância de dois continentes.
Mas a indiferença, tal qual também temos aqui por nossos moradores de rua, cada vez mais jovens, fez com que se passassem nove horas e ninguém percebesse René Robert, assim como passaram-se décadas e o Brasil também não percebeu que seu sistema social está na UTI, como um paciente com Covid-19 que se recusou a tomar vacina - a probabilidade de morte é alta para os negacionistas!