Às vésperas do nosso feriado de Carnaval, o mundo viu-se diante de ousada e perigosa jogada geopolítica do presidente russo Vladimir Putin. Os desdobramentos imediatos indicam que os riscos de instabilidade mundial são elevados e que, no mínimo, a maioria das economias sofrerá impactos ainda imprevisíveis. As peças desse tabuleiro estão em movimento e algumas ainda não entraram – diga-se, principalmente, a China. Para o Brasil, cuja economia tem se mostrado à deriva, os impactos podem ser bem graves.
O Carnaval sempre foi a festa mais bonita que o país “exibia” para o mundo, mas segue há dois anos cancelada. Ir às ruas fantasiados, participar de verdadeiras maratonas de blocos de rua, ou de eventos fechados, assistir a enredos criativos de majestosos desfiles, participar seja em forma de manifestação, seja por mera diversão é a experiência cultural mais típica da grande maioria dos brasileiros.
A fantasia tem sido nutriente fundamental para a sociedade brasileira, que sempre demonstrou dificuldade em encarar suas distorções e atrasos. O recalque também nos assombra talvez na mesma magnitude que nossas fantasias. Mas, neste Carnaval, nem mesmo a atração pela contravenção surtiu efeito expressivo: a maioria da população quase nem tem ido às ruas nem se fantasiado. Sua principal alegoria ainda tem sido as máscaras.
No final da semana passada, algumas divulgações de pesquisas e tendências vieram reforçar o profundo efeito que a pandemia tem produzido no inconsciente coletivo nacional. Ainda parece difícil conjugar fantasia com alegria! Para além da falta de conforto em tentar viver como se a vida estivesse voltando ao “normal”, o Brasil fechou o ano de 2021 com taxa de desocupação (desemprego) de 11,1%, mantendo-se nos elevados patamares de dois anos atrás, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Quando o governo atual assumiu, em janeiro de 2019, a taxa de desocupação era de 12,6%. Na verdade, desde 2016, início da crise econômica que até hoje se arrasta pelo país, a taxa de desemprego mantém-se em dois dígitos. Para agravar o quadro, os resultados dos rendimentos reais totais, em fins de 2021, indicaram que, há quase dez anos, a população trabalhadora não tem tido ganhos reais de rendimento – ganhos acima da inflação.
Do lado do setor privado, o Índice de Confiança Empresarial, produzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), caiu pelo quinto mês consecutivo, em combinação de pessimismo generalizado dos empresários com a situação atual e expectativas mais otimistas, para os próximos meses, somente nos setores da construção e do comércio. O Índice de Confiança do Consumidor, também da FGV, subiu levemente em fevereiro, mas seu comportamento continua incerto e mantido em nível historicamente muito baixo.
O tenso e imprevisível jogo geopolítico atual tem mostrado que todas as versões defendidas pelas partes podem fazer algum sentido. As revisões (futuras) históricas dos fatos transformam-se, quase sempre, em provas de que os seres humanos são peças fáceis de manobra de líderes cujas ambições de poder nunca serão completamente reveladas. Sempre haverá fantasia, no inconsciente coletivo, facilmente regida por alguém com perspicácia, ambição e frieza suficientes para lutar para chegar ou manter-se no poder.
Inventando Anna é o nome da minissérie produzida pela Netflix que conta a história da jovem (sociopata?!) russa Anna Sorokin, ou Anna Delvey, que se passa por milionária alemã, na sedutora Nova Iorque, e consegue enganar pessoas poderosas e influentes, vivendo glamourosamente e chegando próxima de alcançar suas ambições megalomaníacas.
Anna pode ser vista também como fruto de nossa sociedade atual, na qual a ambição é capaz de transpor as barreiras da ética, confiança e palavra por meio de jogadas estratégicas, persuasão e manipulação. “Essa história é completamente verdadeira, exceto pelas partes que foram totalmente inventadas”, slogan apresentado no inicio de cada um dos nove episódios da minissérie, diz muito sobre farsa, manipulação, fantasia, realidades paralelas, poder e ambição.
A vida pode ser sempre vista como o Carnaval, com traçados meio fantasiosos, meio verdadeiros, a depender da roupa que se pretende vestir, ou da máscara que se deseja tirar. Pode ser verdadeiramente narrada, exceto pelas partes inventadas. Na ilusória construção do país do futuro, o Brasil segue, desde sempre, criando narrativas fantasiosas e expectativas desconectadas de suas realidades. E o que é pior: cantando-as em meio a “risos e alegrias para os palhaços no salão”. E assim empurramos, para 2023, a ilusão de que tudo será melhor, até mesmo o Carnaval.