O Fórum Econômico Mundial (WEF, sigla em inglês), realizado tradicionalmente em janeiro, em Davos, retornou presencialmente, em maio de 2022, após dois anos. O evento de 2022 rompeu com uma história de glamour em meio à atmosfera mais sombria e às expectativas menos otimistas. Continua despertando interesse e trazendo relevantes debates, no entanto, em meio a tantos desafios, não abordou um dos temas que dá base para discutir as principais questões de correção das disparidades sociais: os ilícitos fluxos de divisas.
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Sem estatística não contamos nossa história: que venha o Censo!A maternidade muda a noção da finitudeAo Ocidente, faltou 'combinar com os russos': neutralidade é arma da ChinaEsquecemos o refrão musical 'Criança não trabalha, criança dá trabalho'A falta de perspectiva do fim da guerra entre Rússia e Ucrânia, a crise energética, a incerteza com as ações do governo chinês em relação às restrições das atividades econômicas em Xangai, o desigual e inacabado combate ao Covid -19 ao redor do mundo, o aumento da fome e do número de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, assim como as disparidades inter-regionais das perspectivas do futuro do trabalho deram o tom sombrio do evento.
Dentre os debates que acompanhei e avalio como dos mais relevantes estão as discussões sobre o futuro do emprego e a qualidade do trabalho - abordagens que não deixam mais dúvida de como o mundo corporativo vem traçando o futuro do trabalho. Se e como a mudança em curso promoverá salto qualitativo e em que proporção atingirá a todos é uma discussão que ultrapassa aquele privilegiado fórum e que merece maiores reflexões. Deixo como sugestão o vídeo "The four-day week: necessity or luxury?", disponível no canal youtube do evento, e o artigo "Jobs of tomorrow: the triple returns of social jobs in the economic recovery", acessado no site da instituição.
No encontro do WEF de 2018, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari, famoso por seu best-seller "Sapiens: uma breve história da humanidade" - confesso nunca ter lido! -, afirmou algo que o pseudônimo George Orwell, em sua obra mais famosa, "1984", tratou com preciosismo ficcionista futurista inacreditável à época: os dados. Na palestra de Harari, em Davos, o historiador inicia dizendo que os dados são o ativo mais importante do mundo.
Dados são importante por serem capazes de esconder - e em aparente contradição, revelar - os comportamentos humanos e das organizações. A diferença da perspectiva de Orwell e Horari reside, de forma simplista, no que podemos fazer com esse rastreamento de informações e acúmulo de dados. Orwell preocupava-se com a manipulação que as sociedades estariam expostas enquanto Harari buscava traçar o futuro da humanidade e o papel secundário que o homem poderia vir a ter nesse novo contexto. Para ambos autores, os dados coletados são o principal ativo de uma sociedade.
Pouco menos de uma semana do último WEF, a Tax Justice Network (TJN - Rede de Justiça Tributária, em tradução livre) divulgou seu bianual Índice de Sigilo Financeiro, que produz uma classificação das jurisdições mais cúmplices em ajudar indivíduos e corporações a esconder suas finanças. Em 2021, outro relatório da TJN estimou que o mundo perdia, anualmente, cerca de quatrocentos e oitenta e três bilhões de dólares com ilícitos tributários, sendo 65% originários das práticas das multinacionais e 35% dos indivíduos super ricos.
O índice de Sigilo Financeiro indica quais são os principais países propiciadores de sigilo financeiro ao redor do mundo -o que parece inviável de ser construído, pois ao se tratar de sigilo, como pode ser classificado? O índice é uma composição de evidências qualitativas (leis) e quantitativas (fluxos) que se cruzam nas trocas entre os países que permitem sigilo e proteção de vultosos recursos financeiros ilicitamente não tributados.
O rastreamento e cruzamento dessas informações identificam os fluxos ilícitos através de quatro canais: comércio internacional, posições bancárias, investimento estrangeiro direto e portfólio de investimento. Mas, como evidenciar o sigilo?
A metodologia busca evidenciar o sigilo através de medidas de vulnerabilidade a que os países estão expostos e/ou que permitem gerar fluxos secretos.
Ilustrativamente, uma forma de capturar a vulnerabilidade é imaginar um país cujo percentual expressivo de recursos recebidos sobre forma de investimento direto venha das ilhas Cayman; o país receptor torna-se, a partir dessa evidência, uma jurisdição com alta vulnerabilidade no quesito investimento direto estrangeiro. Outro componente do índice é a exposição a esse tipo de vulnerabilidade, medida pela intensidade do fluxo ilícito em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) do país receptor dos recursos.
Após identificar o fluxo e quanto o país contribui vulneravelmente para o ilícito fiscal, o índice também aponta os países parceiros que mais contribuem para essa prática. Resultados extremamente interessantes indicam que o mundo corporativo e político é tão assustador quanto o que revelou, há alguns anos, a investigação jornalística internacional Panamá Papers. A diferença é que, enquanto o último apresenta a lista dos nomes e valores depositados em paraísos fiscais, o trabalho do TJN mostra quão secreto é cada país e quem são seus principais países parceiros.
Para o ano de 2022, resultados surpreendentes apontam que, embora o Panamá seja uma jurisdição mais secreta que o Reino Unido, esse último é utilizado com mais frequência como destino de riquezas offshore, classificando-o, na prática, como maior fornecedor de sigilo entre ambos - Reino Unido ficou em décimo primeiro lugar e Panamá em décimo oitavo. Isso talvez nos permita entender melhor a fúria e audaciosa retaliação do primeiro-ministro Boris Johnson contra os bilionários russos, assim que deflagrada a guerra contra a Ucrânia.
Dentre os 141 países investigados/avaliados pelo Índice de Sigilo Financeiro 2022, os Estados unidos passaram a liderar o ranking, respondendo por 25,78% dos saldos de ilícitos fiscais do mundo. Em segundo lugar vem a Suíça e, surpreendentemente, em quinto e sétimo situam-se, respectivamente, Luxemburgo e Alemanha, contribuindo com 11,3% e 5,2% dos ilícitos fiscais globais. Japão, em sexto lugar, é um dos países que mais contribui para os ilícitos fiscais norte-americanos.
O Brasil aparece em octogésimo terceiro lugar e com contribuição inexpressiva (0,15%) no componente que mede o peso dos ilícitos na escala global. As questões brasileiras de quantidade de fluxo de ilícitos, bem como de falta de transparência parecem muito mais domésticas, sobretudo se considerarmos nosso perfil e estrutura econômicos, bem como nossa baixa competitividade internacional nos setores industrial e de serviços.
Enquanto especialistas se debruçam internacionalmente para decodificar a falta de transparência e as condutas que acabam por sustentar a concentração de riqueza e as perdas sociais geradas por práticas ilegais e injustas, no Brasil de hoje, assistimos ao chamado Orçamento Secreto, em que parlamentares são blindados para fazerem usos de verbas públicas sem se identificarem - nova modalidade em vigor, desde 2020, denominada emendas do relator.
Com ou sem orçamento secreto há também os desvios de verbas da educação para eventos culturais - criamos, assim, os ilícitos do gestor municipal. Meu desejo é que a pioneira Rede de Justiça Tributária seja inspiração para os tribunais de contas regionais e da União, pois os ilícitos não estão somente nos fluxos internacionais, mas, no caso brasileiro, nos recursos domésticos carimbados. Prefiro nem pensar como estão esses fluxos no Orçamento Secreto.