Existe algo de misterioso nas diversas facetas humanas, podendo o homem ser enaltecido tanto por seus gestos de bondade, busca pela paz e cultivo do amor e da solidariedade, quanto pela incitação à guerra e ao ódio. Transitar entre as vertentes do amor e do ódio parece, cada vez mais, o caminho para reforçar o sofrimento humano.
Nas duas últimas semanas, no Brasil, dois episódios retrataram muito bem essas duas vertentes: assistimos à confirmação do assassinado do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e ao assombroso caso de pedido (negado) de aborto para uma menina de 10/11 anos de idade.
Nas duas últimas semanas, no Brasil, dois episódios retrataram muito bem essas duas vertentes: assistimos à confirmação do assassinado do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e ao assombroso caso de pedido (negado) de aborto para uma menina de 10/11 anos de idade.
O caso de pedido de aborto a uma criança merece atenção especial, a despeito e para além das questões jurídicas envolvidas e os graves erros de condução. Documento produzido em conjunto pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) e o Fórum Nacional para a Segurança Pública – intitulado “Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil” - reúne informações, para 18 estados brasileiros, entre os anos de 2017 e 2020, sobre casos de estupro e estupro de vulnerável – conceitualmente distintos por questões etárias e incapacidade de resistência.
Nesses quatro anos, 18 estados do Brasil registraram 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos. Isso é o mesmo que afirmar que o país vivenciou cerca de 45 mil casos de estupro por ano, ou 123 por dia, sendo que pouco mais de um terço (15,5 mil por ano ou 62 mil no período) acometeu crianças de até 10 anos de idade. Dentre os estados com os maiores índices encontravam-se Mato Grosso do Sul, Rondônia, Paraná, Mato Grosso e Santa Catarina, sendo este último o local de ocorrência do caso da criança com pedido inicial de aborto negado.
Do montante registrado pelas autoridades de segurança pública, certamente subdeclarado, seja pela falta de registros em nove estados, seja pela subdeclaração por parte das vítimas, aproximadamente 80% do estupro (de vulnerável) acontecia com meninas de até 14 anos de idade, aumentando esse percentual para 90% a partir dos 15 anos de idade. Em suma, as jovens adolescentes e as crianças meninas são as maiores vítimas de estupro.
'Árvores da paz'
Mesmo diante das grandes atrocidades da vida, e em especial das guerras, sempre somos capazes de extrair relatos e experiências inacreditavelmente esperançosas. "Árvores de paz", filme recém-lançado pela Netflix, narra a história, baseada histórias reais, de quatro mulheres que não se conheciam e passaram a viver clandestinamente para escapar da morte. As quatro viveram por 81 dias em uma espécie de miniporão, na casa de uma delas, uma ruandesa da etnia hutu.
É importante lembrar que, em menos de cem dias, Ruanda vivenciou o maior genocídio da história do mundo, com o bárbaro assassinado de aproximadamente oitocentas mil pessoas. Graças à garra e proatividade dessas quatro mulheres, ao componente aleatório que podemos chamar de “sorte” e que preservou suas vidas, e ao fim do genocídio cometido pelos hutus à etnia tutsi que, hoje, Ruanda detém expressivo número de mulheres em cargos do governo.
Essas mulheres enfrentaram suas realidades e lutaram e continuam lutando para muda-la. No entanto, a noção de niilismo, definida pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, na qual o gesto de negação domina o pensamento, encontra cada vez mais amparo nas sociedades pós-contemporâneas. É apropriando-se dessa entrega humana ao niilismo que as redes sociais lucrativamente encontram espaço e se expandem, sustentam ciclos viciosos de ilusão, negação e adoecimento social. Nessa esteira constroem-se verdadeiras fábricas de manipulação e tendenciosidade.
Associada à negação vem a ignorância, o desconhecimento compulsório e o desinteresse: 45 mil estupros de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos de idade, por ano, é estatística desconhecida de todos. Aqui reside o real em uma de suas vertentes da violência contra crianças e jovens brasileiras; é a vida como tem se apresentado em recorrentes atos de negação aos graves e estruturais problemas sociais brasileiros.
E o Brasil parece ser campeão niilista! Nega o racismo, nega que ainda mantemos estruturas oligárquicas com requintes escravocratas, nega que somos violentos, nega que não somos solidários, nega que estamos ficando para trás em termos de desenvolvimento econômico e humano, nega a corrupção em muitos de seus governos.
O niilismo só tem servido para perpetuar a violência e manter as desigualdades. A vida é desafiadora por si, e como disse o psicanalista Contardo Calligaris, “o sentido da vida é a própria vida concreta, da qual vivemos e da qual morrer faz parte”. É olhando para as quatro mulheres de Ruanda que o ser humano precisa buscar inspiração e dar concretude a um mundo melhor para todos.
Refiro-me a quatro mulheres com histórias de vida duras e marcantes: uma ativista americana que na adolescência, embriagada, matou seu próprio irmão em um acidente de carro; uma freira que vivenciou sua infância e adolescência assistindo seu pai bater em sua mãe; uma ruandesa tutsi criada na zona rural e que ainda bem jovem foi violentada; e uma hutu moderada que abrigou as outras três, vivia isoladamente na infância, passou por dois abortos espontâneos e, no momento do genocídio, estava grávida.
Estamos longe de darmos basta às diversas formas de violência (e pergunto-me se esse dia chegará), sobretudo àquela relativa às crianças e mulheres, mas é somente olhando para o real, buscando a concretude e vivendo a vida com os recursos humanos e individuais que cada um carrega consigo que os desafios e períodos que parecem insuportáveis ou intransponíveis são superados. A vida só acontece no real, mas insistimos no niilismo consolador, negador e manipulador. Enquanto isso, permitimos que estuprem vidas.