Jornal Estado de Minas

ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

Em Ibiraci cabe um Brasil

Ibiraci é um município do estado de Minas Gerais, localizado na região sudoeste do estado, a cerca de 420 km de distância da capital Belo Horizonte e fronteiriço aos municípios de Franca, Pedregulho e Patrocínio Paulista, pelo estado de São Paulo, e de Claraval, Capetinga, Cássia, Delfinópolis e Sacramento, pelo lado mineiro. Essa cidade, com cerca de 14 mil habitantes, carrega em sua história de 194 anos de fundação fortes marcas de um Brasil cheio de contradições, riquezas, desigualdades e desafios. 



Ao chegar no trevo de Ibiraci, pelo lado paulista, avista-se uma placa com o nome da cidade e o seguinte subtítulo: terra dos cafés especiais. Ibiraci é um dos municípios mineiros que se destaca na produção do café de qualidade, alcançada graças às condições geográficas de clima, relevo, solo e altitude – de 1045 metros. Seu carro-chefe é, sem dúvida, a lavoura da cafeicultura que gera, para além do plantio e colheita, série de atividades correlatas e de suporte, impacta a geração de renda e emprego. 

Embora a atividade cafeicultora seja considera a principal geradora de emprego e renda, no município, a maior fonte de arrecadação advém do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e royalties por área alagada. Ambos são gerados em virtude da localização das turbinas de energia da Usina Hidrelétrica Marechal Mascarenhas de Morais, situadas no município de Ibiraci. Graças a esse “acidente geográfico”, Ibiraci acaba sendo privilegiada comparativamente a municípios de igual porte.

Seu atual prefeito, Ismael Silva Cândido, ocupou esse cargo entre os anos de 2005 a 2012 e foi um marco na gestão do município, em época cujos abundantes recursos no país propiciaram, àqueles com visão e boa capacidade de gestão, promover salto de qualidade em suas gestões. 



Os gastos com saúde e educação ultrapassam, em muito, o exigido por lei, ambos em torno de 27% da Receita Corrente Líquida. E isso tem explicação aparentemente simples, embora gere problema de complexa resolução: os imigrantes que ali chegam para o trabalho temporário de colheita do café costumam fazer seu “checkup” anual no Centro de Saúde do município. Há casos de mulheres que fazem parte do seu pré-natal e até mesmo o parto no município. 

Resumindo: Ibiraci torna-se município-polo de saúde para seus imigrantes. E esse impacto também se dá na educação, uma vez que filhos de imigrantes, em idade escolar, também estudam nas escolas públicas municipais e estaduais do município. 

A atividade cafeeira, assim como tantas outras ligadas ao mercado externo e ao agronegócio, vem se mecanizando à medida do possível. Em Ibiraci, aproximadamente 75% das fazendas são de pequeno e médio porte e as restantes, de grande porte. O resultado da produção é praticamente inverso, com a produção intensiva e mecanizada dominando as grandes lavouras e gerando a maior parte da produção local. 



No entanto, mesmo com a mecanização, ainda se faz necessário o uso da mão de obra na época da colheita. E aí surge o Brasil que insiste em reviver seu passado. Ibiraci começou sua história com fazendeiros e escravos. Sempre voltada para a agricultura, expandiu-se tendo o café como sua grande commodity.  Tudo indica que não tem um produtor em Ibiraci que não conheça a lógica do mercado externo ou que não acompanhe a cotação das sacas no mercado internacional, muito embora, majoritariamente, o nível de escolaridade seja até o ensino médio. 

Nesse jeito mineiro de ser, Ibiraci foi expandindo às custas das disparidades e necessidades internas e externas. Antigamente, era grande receptora de migrantes oriundos do Paraná, mas há bom tempo vive da mão de obra temporária dos migrantes que vêm do sul da Bahia. Imaginar a realidade desses migrantes é como voltar na realidade das metrópoles de São Paulo ou do Rio de Janeiro, nas décadas de 70/80 do século XX. 

Na época da colheita, os supermercados de Ibiraci ficam mais cheios, as escolas e os postos de saúde operam no seu limite de capacidade e os migrantes passam a compor a dinâmica da vida da cidade. Nos supermercados encontram-se produtos alimentícios e de cama, mesa e banho. Lojas vendem roupas de boas marcas e os(as) migrantes, ao retornarem para suas casas, saem orgulhosamente bem vestidos(as). O que ganham em 3 a 4 meses de trabalho árduo na lavoura é, em geral, o que levam para sobreviver nos outros 8 meses do ano. 



Já teve época de colheita em que Ibiraci chegou a ter mais residentes temporários do que permanentes. E com essa ocupação maciça, os residentes locais não veem com bons olhos os temporários, sobretudo os trabalhadores permanentes da lavoura cafeeira. 
Mas as questões trabalhistas ainda são desafiadoras no município. Resquícios da cultura oligárquica ainda se fazem presentes, apesar dos sinais evidentes de transformação. Os jovens, em sua maioria, parecem não querer seguir a atividade na lavoura, buscam atividades no setor serviços e/ou fora da cidade. Pela proximidade com Franca e Cássia, o fluxo diário entre essas cidades é intenso, muito embora a armadilha da falta de oportunidade, dentro ou fora do município, ainda propicia condições inadequadas de trabalho.

Do total de autos de infração lavrados no estado de Minas Gerais, entre os anos de 1995 e 2022, 26% referem-se ao cultivo do café. Ibiraci é o município mineiro com maior número de autos de infração lavrados no cultivo de café, no estado de Minas Gerais, nesse mesmo período. Sua última infração ocorreu no ano de 2020 - 10 autos -, e a fiscalização vem se intensificando, sobretudo na época da colheita, entre os meses de maio e agosto.




Na dinâmica da vida agrícola, o cultivo tem passado de pai para filho e a produção ganhado aprimoramento e notoriedade. A contradição aparece em todos os cantos. Dos melhores exemplos de força e vontade de mudar, Ibiraci tem, no mínimo, dois casos que se destacam: a qualidade de seus provadores e a força das mulheres trabalhadoras e produtoras.

Ibiraci tem um produtor e provador de café - “Q-grader”, certificação para competições internacionais – vencedor do Campeonato Brasileiro CUP Tasters 2019, que ficou em 26º entre os 80 Q-graders internacionais, no mesmo ano. Nesse mesmo município, foi criado o grupo Cerejas do Café, cuja presidenta é grande produtora de café local. Trata-se de grupo formado único e exclusivamente por mulheres produtoras. Cansadas de serem vistas como “a mulher que ajuda fulano na produção”, as mulheres reuniram-se e constituíram esse grupo que, gradativamente, vem ganhando visibilidade. Em outubro próximo farão seu primeiro evento nacional. 

Ibiraci é o retrato de um país que tem (i) riqueza conjugada a elevada concentração de renda; (ii) pessoas simples lutando contra as arapucas do livre mercado; (iii) grandes produtores desafiando os mercados e buscando seu espaço internacional. Convive com os conflitos de migrantes e residentes, carece de política construída entre os setores público e privado e ainda é alvo das ações intervencionistas de instâncias federais para correição de práticas trabalhistas. Ibiraci é um pedaço do Brasil, um misto de orgulho e lástima, de coragem e sonho, de beleza e dor. Em Ibiraci cabe um Brasil.