Por Eleonora Cruz Santos
Oito anos antes da promulgação da Constituição Federal, o dia 12 de outubro foi decretado feriado nacional em comemoração à Nossa Senhora Aparecida, proclamada padroeira do Brasil por decreto do Papa Pio XI. Na mesma data tem-se o feriado comercial do dia das crianças. Ambos, neste ano, foram marcados negativamente por manifestações nunca antes vistas na história das crenças e esperanças simbolicamente difundidas nessa data. Estado laico, liberdade de expressão, combate ao trabalho infantil são pautas que precisam ser reestabelecidas urgentemente na sociedade brasileira.
A laicidade do Estado, garantida constitucionalmente pelo artigo 19, inciso I – é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público -, assegura ao indivíduo escolher ou não uma religião e garantir sua liberdade de crença ou descrença. Acaba aí!
Em hipótese alguma, o Estado pode legislar em matéria religiosa, subvencionar cultos, nem as Igrejas podem atuar na vida pública comprometendo a laicidade. Como bem sintetizado por Cássia Maria Senna Ganem, em seu artigo “Estado Laico e direitos fundamentais”, “(...) a separação entre Igreja e Estado, característica do Estado laico, não significa incompatibilidade entre um e outro, e nem falta de diálogo entre ambos. A separação exige que o Estado não apoie nenhuma corrente religiosa, mas também não adote postura antirreligiosa. Em suma, Estado laico é Estado neutro.”
Em diálogo direto com a laicidade encontra-se a garantia da liberdade de expressão. Embora possa parecer absurdo, nos tempos atuais, no Brasil, várias garantias e direitos precisam ser relembrados, ou mesmo restabelecidos. O caput do art. 5º da Constituição Federal consagra o princípio da ordem democrática, o princípio da igualdade, fundamento maior do Estado de Direito e o inciso IV protege a liberdade de pensamento e de expressão.
Dentre outras garantias fundamentais estão a vedação de todas as formas de trabalho infantil para crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade, conforme define o artigo 7º, inciso XXXIII da Constituição Federal. A única exceção é a aprendizagem profissional, a partir dos 14 anos.
Em 12 de outubro de 2022, após dois anos de fortes restrições, a cidade de Aparecida do Norte pode abrir suas portas e receber seus fiéis sem restrição contra a covid-19. Festa marcada por grande multidão de fiéis em tradicionais atos de devoção e fé, neste ano, a Basílica de Aparecida, seu bispo e arcebispo foram violentamente agredidos por fiéis cuja ideologia partidária se sobrepôs às motivações da fé.
O dia 12 de outubro de 2022 ficará marcado pelo desrespeito ao clero, à igreja e aos fiéis que ali estavam em exercício exclusivamente religioso. Não se trata de garantir o Estado laico e a liberdade de expressão; ao contrário, trata-se de garantir que laicidade e direito de expressão sigam regras de respeito, limite e preservação da individualidade e da segurança.
Some aos berros, incitações ao ódio e à total falta de compostura na festa da padroeira, a celebração do dia das crianças com soldados da Policia Militar do município de Uberaba e do Rio de Janeiro fazendo desfile de crianças com vestimentas policiais e armas, mesmo que de brinquedo, nas mãos. Era visível o constrangimento das crianças, seja pela exposição, seja pela violência que significa, no dia da criança, receber a incumbência de se tornar a guardiã contra a violência e o combate ao crime.
Pergunto-me onde chegaremos com um Estado desvirtuado de seus valores assinados na Carta Magna; um Estado em que os três Poderes parecem não respeitar mais suas próprias regras de atuação e limite; um Estado onde legisladores podem fazer vídeos de xingamentos a bispos; um Estado onde policiais transgridem moral e civilmente ao usarem crianças como troféus de seus valores.
No dia 12 de outubro deveríamos estar discutindo como enfrentar o trabalho infantil, seja na sua forma de exploração sexual, seja escrava, doméstica, ou em atividades ligadas ao tráfico de drogas e tantas outras. Nessa mesma data, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) divulgou que, em 2019, 1,9 milhão de crianças e adolescentes de cinco a dezessete anos de idade encontravam-se em situação de trabalho infantil no Brasil. Para 2020 e 2021, o FNPETI estima que os dados pioraram ainda mais.
Outros dados mostram o quanto precisamos avançar no combate ao trabalho infantil e nas políticas de garantia de escolas e boa formação para crianças e jovens: na população brasileira de cinco a dezessete anos de idade, 96,6% estavam na escola, em 2019. No entanto, no grupo das que trabalhavam, essa proporção caia para 86,1%, reforçando o processo intergeracional de pobreza.
Para finalizar, 45,8% do total de crianças e adolescentes trabalhadores estavam em ocupações classificadas como as piores formas de trabalho infantil. Desse contingente, 65,1% tinham entre cinco e treze anos de idade. Pasmem!
Criança não precisa de arma para se defender; ao contrário, criança precisa ser protegida. Criança precisa de política pública para se desenvolver. Criança precisa de Estado laico que respeite divergências e garanta seus direitos. Criança precisa ver seus direitos constitucionais prevalecerem. Crianças com armas nas mãos é fosso humanitário, é sociedade desgovernada e dominada pela violência e pelo ódio.
Serra Leoa mostrou sua atrocidade para o mundo com seu exército de crianças, no final do século passado. O que alguns policiais militares do estado de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, livres para mostrarem crianças armadas no dia 12 de outubro, sinalizam para o país? Qual o tamanho da miséria humana que pode estar sendo construída dentro de quartéis?
No dia 16 de outubro comemorou-se, internacionalmente, o Dia Mundial da Alimentação. O tema deste ano da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) é "não deixar ninguém para trás. Melhor produção, melhor alimentação, um ambiente melhor e uma vida melhor para todos". Papa Francisco aproveitou a ocasião e convidou a FAO a introduzir a “categoria amor” na sua linguagem.
São João da Cruz, o maior místico da igreja católica, escreveu que “no ocaso dessa vida, seremos julgados pelo amor”. Em meio a tanta atrocidade, a única opção é não desistir. É seguir na esperança de que as celebrações místicas, a liberdade de expressão, a laicidade, a prevalência dos direitos e o cumprimento dos deveres constitucionais, por parte do Estado, para construção de uma sociedade mais digna e próspera, tenham no amor e na fraternidade o lubrificante para realinhar os trilhos da história do Brasil.