Jornal Estado de Minas

ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

Democracia sob o jogo de forças das redes sociais

Quando o filme “A rede social” foi lançado, há mais de uma década, houve encantamento geral e fascínio pelo poder que se estruturava via comunicação digital. Em pouco mais de 12 anos e reforçadas pela necessidade de restrição de contato decorrente da pandemia da Covid-19, as redes sociais, para além de se consolidarem como poderoso veículo de comunicação, tornaram-se ambientes de intensas trocas e exposições. Por um lado, as redes sociais vêm se consolidando como espaços de transações (econômicas) em geral; por outro, têm sido cada vez mais utilizadas como espaços ideológicos, de disseminação de fake news e de fragilização das democracias.  
 
Desde o sucesso de “A rede social”, vários outros filmes mostraram como a evolução das redes sociais vem se tornando um perigo de difícil regulação por conta dos agentes econômicos. Dois outros filmes se destacam – na verdade, a lista contém ao menos 9 filmes com essa temática e que merecem ser vistos –, “Privacidade hackeada” e “O dilema das redes”, de 2019 e 2020, respectivamente, documentários com depoimentos de especialistas em tecnologia e alertas dos impactos dos algoritmos e do acesso aos dados dos usuários sobre a capacidade de persuasão e manipulação de seus comportamentos. 




 
Considero esses dois filmes imperdíveis e indico para quem quer compreender um pouco melhor a influência digital sobre os indivíduos, mesmo aqueles que se consideram fora das redes. Afinal, o mundo expandiu suas fronteiras para algo paralelo, virtual, em constante crescimento e que afeta, direta ou indiretamente, as sociedades, a regulação econômica e a vida dos indivíduos. 
 
Jean Tirole foi laureado ao Nobel de Economia, em 2014, por sua contribuição científica aos estudos de regulação dos mercados. Em setembro de 2020, Tirole apresentou, em um webinário promovido pelo The Bendheim Center for Finance, seu recente estudo acerca da autoimagem na esfera pública e privada. As questões fundamentais trazidas por Tirole são “ainda estamos livres para pensarmos(?); até que ponto desenhamos e projetamos nossa autoimagem para a sociedade(?)”. O economista sinaliza que, cada vez mais, em detrimento da autenticidade, os indivíduos buscam fazer parte de grupos identitários e, para se resguardarem, tornam-se menos autênticos – são os chamados guetos de pensamento.
 
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Tirole é também autor do artigo Digital Dystopia, publicado na American Economic Review, em 2021, no qual mostra como a expansão da vida na esfera pública pode levar à desintegração do tecido social na esfera privada. Dentre suas principais conclusões, o autor aponta a necessidade de melhoria do desenho legal, bem como das salvaguardas constitucionais, na atuação das empresas tecnológicas de redes sociais. 




 
Vale frisar que a aclamada atuação das elites tecnológicas, no início da década passada, na disseminação informacional e na esfera pública, trouxe também efeitos deletérios sobre o comportamento dos indivíduos e crescente impacto sobre suas capacidades de terem ou não controle sobre seus sentimentos. 
 
O filme-documentário “O dilema das redes” mostra como os algoritmos produzem “match” entre pessoas com ideias relativamente próximas, mas, pior do que isso, são capazes de induzi-las a se identificarem mutuamente e a construírem “guetos de pensamento” – conceito trazido por Tirole no webinário supracitado. 
 
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Por sua vez, “Privacidade hackeada” explica o papel crucial da empresa Cambridge Analytica e do estrategista Stephen Bannon na eleição do ex-presidente norte-americano Donald Trump. Bannon também assessorou, informalmente, o ex-presidente Jair Bolsonaro e criou, em 2019, o chamado “O Movimento”, organização com a finalidade última de unir os países populistas de extrema direita da Europa.




 
As redes sociais nas sociedades democratas atuam de forma privada e, portanto, permitem a disseminação de estratégias que vão desde a guetização do pensamento à criação de avalanches de fake news capazes de manipular e induzir os indivíduos a agirem conforme objetivos previamente traçados. 
 
No Brasil, a profusão de fake news, a insurgência de atos virtuais violentos e de conspirações sobre temas dos mais diversos, desde os riscos da vacinação, terraplanismo, comunismo, atuações do Poder Judiciário etc. vêm corroborando para a corrosão do tecido social privado, enfraquecendo a autenticidade dos indivíduos, fortalecendo a polarização e a intolerância. 
 
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 O exemplo mais extremo da guetização do pensamento, no Brasil, foi a criação de acampamentos em frente a vários quartéis-generais do Exército, em sua maioria nas capitais das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, como manifestação ao resultado legítimo das urnas eleitorais. Desde 1996, o brasileiro convive com eleições democráticas realizadas com urnas eletrônicas. Fração dos mesmos eleitores que não contestou o resultado de 2018 decidiu lutar por direitos inexistentes, mas estava, na verdade, buscando golpe militar. 




 
As perigosas estratégias daqueles que, financiados ou não, manipulados ou não, abduzidos ou não, mas que aderiram à guetização do pensamento ditatorial e golpista de Nação são, nesse momento, alvo de regulação das ações destrutivas que as redes sociais podem exercer sobre a liberdade e a capacidade de alternância de ideias, de poder e de debates que somente a democracia é capaz de propiciar. A esses indivíduos, a aplicação severa da Lei é o único caminho para garantir a manutenção do regime democrático no país.
 
Parafraseando Winston Churchill, “a democracia é a pior forma dentre os regimes políticos, com exceção de todas as demais”. Acredito e concordo com o “ótimo relativo” de Churchill e adentro 2023 com menos pessimismo que em 2022, apesar da destruição patrimonial e das cenas de desrespeito a toda sociedade brasileira, ocorridas no inesquecível 08 de janeiro do mês corrente. 
 
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A todos e todas que acreditam, assim como eu, que o ótimo relativo segue sendo o regime democrático, deixo meus votos de que, em 2023, a esperança na guetização dos melhores e mais altruístas pensamentos coletivos, virtuais ou não, possam induzir nossa Nação e o mundo a melhores, mais dignas e universais condições sociais e humanas. E que a fragilizada democracia encontre, na regulação das redes sociais, espaço para seguir como o mais desafiador, livre e justo regime político para a prosperidade das Nações!