Em 2007, Eliane Brum ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Reportagem, intitulado “A vida que ninguém vê”. O livro traz a história de 21 pessoas que, oriundas de condições socioeconômicas muito precárias, eram invisíveis à agitada sociedade gaúcha, em meio a um país e um mundo em franco processo de globalização e de transformação nas relações laborais e humanas.
Algumas daquelas histórias foram lidas em meio a lágrimas que escorriam sincronicamente à cadência em que as palavras batiam em meu coração. Desde a publicação de Brum até os dias de hoje, o que tem se notado, nacional e internacionalmente, é um cenário de crescente invisibilidade e precariedade nas relações laborais e humanas.
Algumas daquelas histórias foram lidas em meio a lágrimas que escorriam sincronicamente à cadência em que as palavras batiam em meu coração. Desde a publicação de Brum até os dias de hoje, o que tem se notado, nacional e internacionalmente, é um cenário de crescente invisibilidade e precariedade nas relações laborais e humanas.
Dentre as 21 histórias narradas em “A vida que ninguém vê”, duas remetem diretamente aos desafios de rompimento da reprodução intergeracional da pobreza: “Eva contra as almas deformadas” e “Adail quer voar”. Na primeira, Brum conta a história de Eva, mulher, negra, deficiente que, às custas de muita garra e persistência, conseguiu chegar ao ensino médio e, a partir daí, mudou-se para Porto Alegre para trabalhar como empregada doméstica. Eva consegue, em Porto Alegre, insistindo contra tudo e todos, concluir o ensino superior.
Os relatos das 21 crônicas de Brum são a tradução, para o concreto, das estatísticas oficiais de mercado de trabalho no Brasil, produzidas e divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): por questões metodológicas, os dados só são comparáveis de 2012 em diante e indicam que:
- a informalidade continua girando em torno de 40%;
- o desemprego, embora já viesse em crescente movimento desde o início da grave crise econômica deflagrada com mais força em 2016-17, alcançou seu pico nos primeiros meses da pandemia da covid-19 e vem se situando abaixo dos 2 dígitos desde os fins de 2022.
- a informalidade continua girando em torno de 40%;
- o desemprego, embora já viesse em crescente movimento desde o início da grave crise econômica deflagrada com mais força em 2016-17, alcançou seu pico nos primeiros meses da pandemia da covid-19 e vem se situando abaixo dos 2 dígitos desde os fins de 2022.
Lançando mão dos dados relativos aos anos da grave crise econômica (2016 e 2017) que antecedeu a pandemia da covid-19, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) produziu o documento “Futuro do Trabalho no Brasil: Perspectivas e Diálogos Tripartites”, cuja abordagem em nada se perdeu para os anos seguintes. Ao contrário, o documento permanece muito atual e destaco aqui dois aspectos cruciais.
Primeiro, os impactos que os processos de redução e precarização de postos de trabalho, orquestrados em meio à globalização, ao crescente desenvolvimento tecnológico, à automação e robotização na indústria manufatureira, têm tido sobre as perspectivas de emprego. Dada a qualidade média da escolaridade da mão de obra nacional, refletida em sua baixa produtividade, o mercado de trabalho vem, há praticamente duas décadas, proporcionando desalento à mão de obra menos qualificada.
Segundo, a chamada pejotização como “modalidade” de formalização sem preservação de direitos e garantias trabalhistas. Para além da precarização do mercado de trabalho formal e das elevadas taxas de informalidade, o país ainda convive com atividades agrícolas, intensas em mão de obra, mesmo que os processos de automação estejam cada vez mais em curso. E é nesses mercados que formas ainda inimagináveis de trabalho persistem: os trabalhos escravo e infantil.
Desde 1995, quando iniciaram as fiscalizações, até o ano de 2022, inclusive, o Brasil acumulou o total de 60.251 pessoas encontradas em condições de trabalho análogas à escravidão. De 2002 em diante, o Ministério do Trabalho e Emprego começou a apurar a origem (naturalidade) das pessoas resgatadas: nos últimos 20 anos, 9.153 pessoas (21% do total do país) eram nativas do estado do Maranhão, conhecido como o estado com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. Em seguida vinham os nativos de Minas Gerais (4.736) e Bahia (4.454).
Em 2022, foram registrados 2.575 casos de trabalho escravo, dos quais 41,6% (1.071) situavam-se no estado com o terceiro maior Produto Interno Bruto (PIB) do país – Minas Gerais.
Em 2022, foram registrados 2.575 casos de trabalho escravo, dos quais 41,6% (1.071) situavam-se no estado com o terceiro maior Produto Interno Bruto (PIB) do país – Minas Gerais.
Recentemente, as vinícolas do estado do Rio Grande do Sul foram alvo de operações que deflagraram condições análogas à escravidão que incluíam até aparelhos de eletrochoque. Foi nesse mesmo estado que Brum nos mostrou, com testemunhos datados de 1999, que caminhamos em cidades grandes com pisadas que passam por cima de vidas humanas – vidas “marcadas para sofrer”.
Passados praticamente 24 anos da produção desse livro-reportagem, notamos avanços sufocados por novos retrocessos. Encerro essa coluna com uma das frases escritas pela jornalista, ao final de uma de suas 21 crônicas: “A diferença maior é que o enterro de pobre é triste menos pela morte e mais pela vida”.
Passados praticamente 24 anos da produção desse livro-reportagem, notamos avanços sufocados por novos retrocessos. Encerro essa coluna com uma das frases escritas pela jornalista, ao final de uma de suas 21 crônicas: “A diferença maior é que o enterro de pobre é triste menos pela morte e mais pela vida”.