Em 1948, morre Zelda Fitzgerald, autora de “Essa valsa é minha”, porém mais conhecida por ter sido esposa do famoso escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. Nesse mesmo ano, Golda Meir assume o cargo de embaixadora de Israel na União Soviética. Em 1973, já primeira-ministra de Israel, Golda enfrenta seu maior desafio, a Guerra do Yom Kippur. A socialite Angela Diniz, três anos depois, morre assassinada, no Brasil, por seu recém-companheiro. Viver à frente do seu tempo e em contextos de violência íntima parece ser o denominador comum na vida dessas três mulheres.
Golda Meir contrariou decisão das Nações Unidas, enfrentou o secretário norte-americano Kissinger, respondeu pelo massacre da Guerra do Yom Kippur, mas, apesar de tanta pressão, saiu vitoriosa. Em “Golda, a mulher de uma nação”, a primeira-ministra narra, em episódio logo no início do filme, o desrespeito dos ministros de Estado ao não se levantarem no momento em que ela adentra a sala para reuniões estratégicas sobre aquela guerra. Golda foi considerada a “dama de ferro dos israelenses”, uma mulher muito à frente do seu tempo.
Vale a pena conhecer um pouco de Golda pelo olhar do diretor Guy Nattiv, nascido em Israel em 1973, o ano daquela guerra. O filme consegue transmitir a tensão vivida por Golda no que ela mesma considerou os 20 dias mais marcantes de sua vida. Um misto de coragem, racionalidade, frieza e inteligência, tudo regado a muita tensão e, como pano de fundo, marcado pela escolha por uma vida pública acima da saúde e da vida privada.
Em contextos bem diferentes, voltadas para o glamour da vida privada, as socialites Zelda Fitzgerald e Angela Diniz eram mulheres com alma livre. Experimentaram festas regadas a muita droga e álcool, em meio a tensas relações conjugais e extraconjugais.
Zelda viveu à sombra do famoso Scott, mas, quando diagnosticada com esquizofrenia, passou por vários períodos de internações em sanatórios. Em uma dessas internações, escreveu “Essa valsa é minha” - livro que me encantou aos 20 anos de idade. Zelda reclamou direito de parte das obras literárias do seu ex-marido, Scott, chegando a acusá-lo de roubar páginas de seu diário e transcrevê-las literalmente para um de seus livros - “Este lado do paraíso” – ou mesmo de usá-lo como fonte de inspiração para outras obras.
Angela Diniz era mineira, casou-se cedo, aos 17 anos, com um homem da alta sociedade mineira, 14 anos mais velha do que ela. Tiveram três filhos e, após dez anos de casados, Angela pede a separação e acaba por perder a guarda dos filhos. Muda-se para o Rio de Janeiro, passa a fazer parte da alta sociedade carioca e a transitar no circuito Rio-São Paulo. Envolve-se com homens violentos, Ibrahin Sued e, posteriormente, Doca Street, aquele responsável por lhe tirar a vida com quatro tiros, sendo três no rosto e um na nuca.
“Angela” também é filme recém-lançado para o cinema. Segue roteiro bem mais leve do que parece ter sido a vida daquela mulher, preservando o que o podcast “Praia dos Ossos” relatou com muito mais fidedignidade. Independentemente das motivações que levaram ao seu assassinato, assim como o de milhares de mulheres, o fato é que o feminicídio continua crescendo no Brasil. Segundo os dados do 17o. Anuário de Segurança Pública, lançado em julho último, os casos de feminicídio subiram de 1.300 para 1.400 entre os anos de 2021 e 2022.
Muito além das histórias de pessoas reconhecidas socialmente, o mundo invisível das desigualdades entre gêneros e da violência explícita ou não contra as mulheres mantém-se bem vivo e sem sinais de mudança. Políticas de igualdade de gênero em cargos públicos ainda não saíram do papel enquanto mulheres em cargos de liderança ainda são fortemente boicotadas. Na semana passada, assistimos à humilhante exoneração de Ana Moser do Ministério dos Esportes para dar lugar à acomodação política fisiológica que continua viva e imperativa.
Mas, com ou sem fisiologismo, com ou sem garantias de liberdade e de direitos, nem os países mais desenvolvidos têm avançado em suas agendas de igualdade de gênero. O mundo está longe de alcançar a meta de igualdade de gênero incluída nas Metas do Desenvovimento Sustentável, como evidencia o recém-lançado relatório “The paths to equal – Twin indices on women’s empowerment and gender equality”, produzido conjuntamente pela Entidade para Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
O relatório estima que ao menos uma em cada três mulheres com 15 anos ou mais sofreu alguma experiência íntima de violência vinda do parceiro e/ou violência sexual de não parceiro. Isso representa 736 milhões de mulheres. E, nos últimos 12 meses, 245 milhões de mulheres casadas e jovens com 15 anos ou mais foram submetidas à violência física ou sexual por parte do parceiro. É importante destacar que estudos indicam que cerca de 60% das mulheres não relatam atos de violência vividos e somente 10% delas os denunciam.
Além da violência física, há o que poderíamos chamar de violência de acesso. Mesmo nos países com elevado grau de desenvolvimento, o relatório conjunto indica que, embora com menores lacunas entre gênero, tais países não são capazes de empoderar as mulheres. Dentre os 114 países analisados, menos de 1% das mulheres e jovens vivem em países com alto empoderamento feminino e alcançam pequena lacuna entre gêneros. Nenhum dos 114 países atingiu completa paridade e empoderamento de gênero.
O relatório aponta que, globalmente, as mulheres são empoderadas para alcançar, em média, 60% de seu potencial, enquanto os homens, quase 90%. Esses percentuais se mantêm há três décadas. O retrato disso se dá, dentre outros fatores, na igualdade de acesso ao mercado de trabalho: pouco mais de 60% das mulheres na idade ativa entre 25 e 54 anos de idade estão na força de trabalho ante 90% dos homens nessa mesma faixa etária.
Imaginar que, em pleno final do século XX, uma mulher não recebia o mesmo tratamento que qualquer outro homem em igual posição e que o feminicídio doloso, no Brasil, aceitava a tese de legítima defesa, evidencia que é ainda tarefa hercúlea criar filhas que acreditem na possibilidade de serem livres e seguirem seus desejos e escolhas. Desconheço uma mãe que não se preocupe com a (potencial) violência contra sua(s) filha(s).
Chegamos no século XXI e vivenciamos a trágica pandemia da Covid-19 que agravou, ainda mais, a violência doméstica contra mulheres e crianças, em todo o mundo. Não diria que se tratou de um retrocesso, mas sim da ausência de avanços e garantias escancarados por essa pandemia. Angelas, Zeldas, Goldas, Marias, Antonias e toda sorte de mulheres livres interiormente, seguem expostas às violências diárias das tóxicas relações entre gêneros, íntimas ou não, em forma de aprisionamentos exteriores.