Confesso que em uma certa altura da minha vida me vi sem um pingo de paciência para explicar o que para mim é óbvio demais, tipo: o que é racismo, se existe ou não racismo reverso, por que dia da consciência negra e não dia da consciência humana, se branca pode ou não usar turbante e tranças, dentre outras questões do tipo. Até porque são tantas reflexões interessantes que perpassam a história, a literatura, as artes plásticas, a música, a dança, enfim a cultura negra que ficar reiteradamente se debruçando sobre as mazelas do racismo é um pouco frustrante.
Frustrante sim, mas necessário e é, em razão dessa necessidade, que venho constatando que o óbvio precisa sim ser dito, e essa constatação se dá toda vez que escuto que cotas raciais são privilégios, que tudo agora é racismo, que pessoas negras se vitimizam dentre outros comentários do tipo. Então por gentileza, me acompanhe nesse raciocínio super simples. Há um tempo na Terra havia seres humanos, não havia essa de raças, apenas pessoas de continentes, territórios e países diferentes, africanos, asiáticos, indígenas e europeus.
Um dia o europeu se autointitula como branco e determina que o africano agora é negro e cria toda uma teoria que o branco é o ideal de perfeição e que o negro era uma espécie de “sub gente” e por esse motivo deveria ser escravizado. Durante séculos, sustentam essa teoria de que as pessoas negras têm menos inteligência, não têm alma, que elas são selvagens, que são mais suscetíveis a se tornarem criminosas, enquanto as sequestram de seu continente, as escravizam em territórios invadidos e as forçam sob ameaças e torturas a trabalharem para a construção de seus patrimônios.
Além de enriquecerem em cima do trabalho forçado dos africanos, os europeus escravocratas elaboraram todo um discurso de demonização dos orixás e de todo sagrado da fé de origem africana. O resultado disso é o medo, a repulsa e a intolerância que inúmeras vezes se perpetuam ainda hoje em um extremo de agressões aos adeptos dessas religiões e depredação dos templos e terreiros.
Aos poucos foram destruindo todos os símbolos de pertencimento, o nome foi o primeiro deles. Você já reparou como são aceitáveis na nossa sociedade nomes como Michael, Giovanni, Luigi, Emilly, Alexandra? Mas garanto, se eu disser que vou colocar o nome dos meus filhos de Abayomi ou Samora as pessoas começam a questionar dizendo que são nomes que causam constrangimento aà criança.
Entende como foi impregnado em nosso olhar como aceitável a religião, a linguagem, a cultura europeia e como foram classificados como inferiores os elementos da cultura negra. A capoeira, o samba, o candomblé, a umbanda, o afoxé, o funk não existem ao longo da história, resistem.
Nós negras e negros também não existimos ao longo da história, resistimos aos extremos da opressão. Acho que ao chegar até aqui nessa reflexão já é possível entender que o racismo não é uma opressão criada pelo negro ou pela a esquerda para se ter privilégio, não é mesmo?
E sim um sistema criado pelo europeu para se dar bem economicamente, um sistema estruturado ao longo da história de uma forma tão bem planejada que é preciso um outro planejamento para desestruturá-lo. Não vai ser da noite para o dia que estigmas e estereótipos sobre pessoas negras irão desaparecer do imaginário social. Quem escravizou deixou heranças econômicas e simbólicas para os seus descendentes e herança de apropriação e de violência aos descendentes de seus escravizados.
É essa herança que faz com que a universidade seja branca ao ponto de precisar de uma política que proponha uma reserva de vagas para que pessoas negras, indígenas e quilombolas possam ter acesso. Porque até então 100% das cotas eram para os brancos com critérios de entrada elaborados por eles para eles, mas pago também por nós.
Todas as gerações da minha família arcaram com os custos através de impostos para que filhos e filhas dos descendentes de europeus pudessem estudar nas federais, transformando a educação que deveria ser encarada como básico e de acesso a todos em um artefato do privilégio branco.
Pois então, o óbvio precisa ser dito e é óbvio que o racismo é um sistema de opressão que exclui e mata e não uma mera ofensa, portanto não tem como haver racismo de negros contra brancos. Tem como haver preconceito, falta de gentileza, desrespeito, mas racismo reverso não existe. Por que o poder é branco, a maioria dos políticos, dos juízes, dos médicos, dos cientistas, dos empresários, de quem é dono dos meios de produção são brancos e não há como negros oprimirem brancos em razão da raça.
Esse espaço aqui proporciona uma introdução a esse assunto que mesmo buscando expor de uma forma mais simples não é nada simplista, e se por um acaso você tenha interesse em aprofundar um pouquinho mais pesquise as obras dos intelectuais Achille Mbembe, Carlos Moore, Douglas Barros, Cida Bento, Lélia Gonzalez, Neuza Santos e bell hooks. Tenho certeza que vai gostar muito.