Há alguns anos atrás uma rede de livrarias famosa fez uma promoção no dia das mulheres que saí cansada do trabalho direto para o shopping. Nesse dia todas as clientes tinham desconto de 50% em todo o acervo de livros. Cheguei por volta das dezenove horas e a livraria estava lotada de mulheres escolhendo o que iria comprar. Dei logo um jeito de escolher os que mais me interessavam e segura-los porque se eu marcasse bobeira a outra cliente levava o livro. Fiquei equilibrando uma pilha de livros nas mãos, assim como as outras clientes, afinal não é todo dia que tem uma promoção como essa, não é mesmo?
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Carta a Lélia de Almeida GonzalezTenho que admitir, o óbvio precisa ser ditoDaltônicos da contemporaneidade Os ACMs 'negões' do Governo LulaGritaram-me macaca, e daí?O crime que as mulheres mais temem é o estuproNo meio daquela mulherada leitora eu consegui achar um espaço no chão, e comecei a ler as sinopses dos livros que eu ainda não conhecia, verificar os valores e fazer as contas. Nesse momento a moça que pensou que eu trabalhava lá volta e me pede para ver os livros que eu escolhi. Eu permito, ela senta ao meu lado e em seguida me pede desculpas. Eu respondo que tudo bem e largo pra lá, já que pelo menos ela me pareceu entender o porque ela achou que uma mulher negra não poderia estar em uma livraria comprando livros como todas as outras tantas mulheres brancas que ali estavam.
Bem antes de alguém interpretar equivocadamente que eu vejo como desmérito trabalhar em uma livraria informo que gosto tanto de trabalhar em livraria que eu já tive uma no centro de Belo Horizonte e lá eu era vendedora, contadora, marketeira, faxineira, carregadora e tudo mais que precisasse. A questão aqui abordada é que por mais emancipada que seja uma mulher negra a cultura dominadora do capitalismo aliado ao racismo restringe a nossa liberdade e nos força a uma identidade de submissão e de servidão. Por que uma pessoa negra quase sempre escuta a pergunta: você trabalha aqui, mesmo sendo em uma empresa em que os funcionários usam uniformes em seus expedientes? Talvez por que não temos direito de usufruir dos espaços culturais, de lazer e de compras? Ou por que temos “cara” de quem está sempre em todos os espaços em prol de servir a branquitude?
Já ouvi diversos relatos de intelectuais negras sobre ocasiões que foram convidados para ministrar palestras em grandes eventos acadêmicos. Em um deles uma dessas profissionais foi conduzida de imediato para o acesso à cozinha, sem se quer deixa-la informar que precisava fazer o credenciamento como convidada especial. Uma outra me contou que a intelectual que iria dividir a programação no palco com ela a confundiu com uma copeira e pediu um café sem açúcar.
A pergunta: “Você trabalha aqui?” pode até parecer inofensiva, e acredito que sem o intuito de ofender, mas é uma pergunta que afirma que a hierarquia está dada e chancelada no imaginário popular que forja um lugar sempre em empregos que ofertam sub-salários para as pessoas negras.
É necessário uma reflexão crítica contra hegemônica para conseguir assimilar e entender o quão violento é ser tratada como serviçal em todos os lugares que você se propõe a estar, por isso só por isso é necessário desconstruir esse imaginário de negritude servil. Nós somos estudantes, atletas, escritores, clientes, doutoras, médicas, pacientes ou simples transeuntes, a servidão não é inerente aos nossos corpos pretos. Entenda.