Jornal Estado de Minas

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

O crime que as mulheres mais temem é o estupro



O meu primeiro emprego registrado após concluir as graduações de jornalismo e de publicidade e propaganda foi como professora de língua portuguesa na Escola Estadual Paulo Freire localizada dentro de um complexo penitenciário de segurança máxima chamado Nelson Hungria. Me lembro que quando conhecidos, amigos e parentes ficavam sabendo do meu novo emprego, a primeira pergunta quase sempre era: você não tem medo de dar aula para bandido?

Mesmo eu sendo uma mulher preta, militante do movimento negro e encarando essa tarefa empregatícia de lecionar em um presídio masculino como um ato político, tenho que admitir que a minha maior preocupação, ou melhor, o meu maior medo mesmo era de ter alunos que fossem estupradores. Eu não tenho medo de ladrão, assassino e traficante. É obvio que não quero ser roubada, assassinada, e nem comprar drogas ilícitas, mas ser assaltada, assassinada ou uma consumidora de drogas ilícitas não me causa tanto medo como tenho de um estupro. Quando participei do processo de designação para integrar a equipe docente fui informada que nos pavilhões que tinham o “beneficio” das aulas não haviam estupradores e que esses  ficavam alocados em outros pavilhões. Ok, então ótimo fui despreocupada fazer o meu trabalho. 



Eu dava aula em dois pavilhões abertos e o restante eram fechados. Pavilhão aberto são aqueles que os privados de liberdade tem o “beneficio” de trabalhar lá no presídio mesmo, nas fábricas que têm lá dentro, na lavanderia, em obras e nos diversos serviços de manutenção da unidade.  Nos pavilhões abertos eu ficava no mesmo ambiente que meus alunos sem nenhuma grade que nos separavam assim tal qual uma turma de escola regular. Já as pessoas que estavam no pavilhão fechado não tinham o beneficio do trabalho que proporcionava uma remissão, que a cada dois dias trabalhados eles tinha direito a um dia a menos na pena, além disso durante as aulas eles ficavam trancados assim como eu em um espaço que nos separavam com uma grade. Então acho que não é difícil entender que quem esta no pavilhão aberto não quer ir para o pavilhão fechado não é mesmo? Mas havia uma fila de espera gigantesca de quem estava nos pavilhões fechados querendo ir para os abertos.

Um dia, quando fui dar aula no pavilhão fechado, me deparei com um aluno meu que estava no aberto na semana anterior e, mesmo não sendo adequado fazer determinadas perguntas aos alunos, me escapou: "Uai, o que você está fazendo aqui?". Ele me respondeu que teve problema com um colega de pavilhão e que não queria ficar em pavilhão lotado de estupradores. Eu inocentemente rebati, "mas lá não tem estuprador não", e ele respondeu olhando bem nos meus olhos: "Você que pensa". Fiquei com um pé atrás, guardei a informação, continuei dando minhas aulas mais atenta do que nunca, mas nada que me paralisasse. Afinal uma jornalista e publicitária não iria atravessar duas cidades para dar aula em um ambiente hostil e insalubre como são as cadeias brasileiras se não fosse por necessidade financeira, não é mesmo?

Passadas algumas semanas, no final de uma das aulas, um aluno novato na turma veio tirar dúvidas na minha mesa e três alunos permaneceram sentados no fundo da sala. O aluno que estava tirando as dúvidas diziam para o grupo sentado que podiam se retirar, mas o grupo permaneceu fazendo de conta que nada tinha sido dito a eles. Só depois que eu sanei as dúvidas do aluno e que o aluno saiu é que os demais se levantaram e saíram da sala. Um deixou escapar propositalmente para eu ouvir: "Estuprador precisa só de dois minutos. É ruim que a gente vai dar esse mole". E esse era o código, se um aluno que tivesse cometido qualquer crime que não fosse estupro, todos os alunos saíam e te deixavam sozinha com quem quisesse fazer alguma pergunta ou tirar alguma dúvida. Já estupradores, não.

Como a maioria da população carcerária não queria perder o benefício da remissão que o pavilhão aberto proporcionava, eles se esforçavam para tolerar os estupradores que ali estavam, sem arrumar nenhuma criaca. Mesmo eu sabendo que cadeia é um lugar povoado por maldade e que provavelmente ninguém ali estava rezando quando foi preso, me senti segura na medida do possível. Não em razão dos agentes penitenciários porque na sala só era eu e os meus alunos, mas porque os meus outros alunos mesmo naquele momento estando privados de suas liberdades  se posicionavam para preservar a minha integridade física. Nas últimas semanas me lembrei algumas vezes desse período da minha vida em 2013 ao acompanhar as notícias da prisão do jogador de futebol Daniel Alves acusado de ter sido o autor de um crime de estupro na Espanha, acompanhado do silêncio e da inércia dos outros homens que não impedem essas situações de acontecerem. 



Não, eu não proponho criticamente que os homens julguem ou criminalizem os seus colegas, irmãos que estão na situação do Daniel Alves, até porque infelizmente isso é o que minha família chama de chutar cachorro morto. E porque ele é um homem negro e mesmo que não tenha cometido esse crime, ele é o estereótipo racista perfeito de elemento suspeito. O sistema de justiça que faça o trabalho dele, e que apure se ele é ou não é culpado, se ele deve ou não ser criminalizado. O que eu proponho é que esses homens lembrem que nasceram de uma mulher, que muitas das vezes são irmãos, sobrinhos, tios, primos e pais de outras mulheres que assim como eu tem pavor de serem submetidas a um crime como esse.

No ultimo dia 12 de fevereiro, completou-se 11 anos da barbárie de Queimadas na Paraíba, aquele estupro coletivo planejado e executados por “amigos” das cinco vítimas que resultou em dois feminicídios. De forma recorrente, nos últimos anos cotidianamente assistimos e ouvimos diversos absurdos de cunho abusivo. Um exemplo foi quando o então deputado Jair Bolsonaro disse a uma mulher que ela não merecia ser estuprada, porque ela é feia e, posteriormente, quando presidente da República, ele disse que “pintou um clima” com meninas de 14 anos. Vimos também a dolorosa cena do médico anestesista  Giovanni Quintella Bezerra introduzir seu órgão genital na boca de uma mulher desacordada durante o seu parto em um hospital público. 

Esses exemplos são os que se tornaram públicos na mídia e eu me pergunto: e os outros casos de tantas mulheres anônimas que passam por violências até piores, como é que ficam? Será que os homens que estão ao seu entorno têm empatia? Será que eles alertam as possíveis vitimas, impedindo um crime que basta dois minutos para ser realizado? Será que eles se colocam no lugar das mulheres enquanto possíveis vítimas ou só têm empatia pelo possível estuprador por se enxergarem nos lugares deles e por esse motivo há esse doloroso silêncio e indiferença?