Jornal Estado de Minas

COLORISMO

Os ACMs 'negões' do Governo Lula

 
Precisamos urgentemente falar de colorismo, mas não o colorismo que demarca racialmente a parcela negra da população, até porque temos pesquisas e publicações que fazem isso com maestria. Precisamos falar é daquele colorismo que passa em branco e despercebido, o colorismo dentre os brancos brasileiros. Eu sei que essa é uma discussão densa e que aflora a fragilidade branca, mas alguém tem que fazer essa conversa nada agradável, mas necessária.




 
Nas últimas eleições, assistimos a quantidade de candidatos a cargos no Legislativo e no Executivo que anteriormente se autodeclararam brancos e passaram a se declarar negros. Essas mudanças de autodeclaração se deram “coincidentemente” após ser aprovada uma reserva de verbas direcionada às pessoas negras em prol de promover a igualdade racial nos cargos políticos brasileiros. Um caso que ganhou bastante notoriedade foi o do ACM Neto, que era candidato a governador no estado da Bahia. Nas pesquisas, ACM Neto era o favorito, mas viu seus planos de se tornar governador desabarem quando os eleitores baianos descobriram que ele se autodeclarou negro, mesmo possuindo fenótipos brancos. O candidato recebeu inúmeras críticas nas redes sociais e recebeu o apelido irônico de ACM negão.
 
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Para se livrarem de suas identidades brancas, pessoas brancas reivindicam uma ascendência longínqua com não brancos. Geralmente, elas argumentam que não são brancas por terem negros ou indígenas em sua arvore genealógica. Essa ideia está totalmente embasada em uma perspectiva biológica da raça, onde ser branco seria necessariamente ser branco puro. Nessa lógica, só poderia ser branco pessoas sem qualquer ligação hereditária com negros ou indígenas.

 


Como bem sabemos, diferentemente dos Estados Unidos, a raça e o racismo no Brasil não se dão por casta, por ascendentes, e nem por genótipos, mas sim por aparência física, ou seja, pelo fenótipo. Portanto, ter um ascendente longínquo negro não fará a pessoa branca vivenciar socialmente as violências que uma pessoa negra vivencia. A racialização brasileira perpassa pela corporeidade, e da mesma forma que há diversos tons de pele de pessoas negras, há também muitos tons de branco. O branco no Nordeste do país é diferente dos brancos do Sul, que por sua vez difere dos brancos do Norte, mas em comum todos têm seus privilégios hierárquicos socialmente preservados.




 
Um fato que recentemente me chamou atenção foi a quantidade de ministros que se autodeclararam negros na atual gestão. Dos trinta e sete ministros do governo Lula, 10 se autodeclaram negros, isso mesmo, 10. A princípio, esse número passa a ideia de que as coisas estão melhorando e que, até que enfim, há uma gestão mais diversa, não é mesmo? Mas quando fui pesquisar o rosto de cada um, duvidei se os 10 passariam em uma banca de heteroidentificação caso se declarassem negros, em um processo seletivo em uma faculdade com reserva de vagas para alunos negros ou em um concurso público para servidores.

Na atual gestão, as pessoas que se autodeclararam negras são: Anielle Franco, como ministra da Igualdade Racial; Luciana Santos, como ministra da Ciência e Tecnologia e Inovações; Margareth Menezes, como ministra da Cultura; Marina Silva, que ocupará novamente o cargo de ministra do Meio Ambiente; Silvio Almeida, no Ministério dos Direitos Humanos; Flávio Dino, como ministro da Justiça e da Segurança Pública; Juscelino Filho, como ministro das Comunicações; Rui Costa, como ministro da Casa Civil da Presidência da República; Carlos Lupi, como ministro da Previdência Social; e Waldez Góes no Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional.
 
Então, Juscelino Filho, o ministro das Comunicações foi um dos candidatos que mudou sua autodeclaração nas últimas eleições. Antes de existirem verbas destinadas aos candidatos negros, ele se via como branco e, agora, se vê como um homem negro. Ele não tem fenótipos de uma pessoa negra, tem a pele clara, o cabelo liso e não possui feições faciais negroides. Usufrui de todo privilégio da brancura, inclusive se sentindo tão universal a ponto de se declarar negro publicamente sem nenhum constrangimento. Rui Costa, Flávio Dino e Waldez Góes também não passariam na banca de heteroidentificação, ao meu ver, mas passariam facilmente em uma vaga de emprego daquelas seleções que pediam e as que ainda pedem currículo com foto. 




 
É importante salientar que quem possui a corporeidade como a deles não são abordados com truculência pela polícia por serem lidos como elemento suspeito em razão da raça, nem tão pouco são chamados de 'macaco', ofensa destinada a pessoas negras, não são confundidos com ladrões dentro de um carro, não são atingidos com 111 tiros, não são arrastados por quilômetros por uma viatura da polícia, muito menos assassinados em um estacionamento pelos seguranças do supermercado, não estão sujeitos a serem mortos em uma câmera improvisada de gás por policiais federais. Tudo isso porque não são negros, são brancos. São lidos e tratados socialmente como brancos na nossa sociedade.
 
Ser um branco nordestino é diferente de ser um negro nordestino. A resposta nada resignada quanto a isso da população baiana se deu nas urnas, quando ACM Neto foi derrotado após praticar oportunismo ideológico. O fato dos três ministros citados aqui serem nordestinos assim como o ACM Neto, não fazem deles negros e nem incompetentes para ocupar o cargo para o qual foram nomeados, mas faz com quê os dados de equiparação racial no atual governo sejam subnotificados ou distorcidos. 
 
É importante levar em consideração que, além da paleta do colorismo negro, há também a paleta do colorismo branco, e que tentar negar a identidade racial branca por não ser o mais branco na paleta, não agrega em nada. Muito pelo contrário: prejudica as políticas de promoção da igualdade racial e, além de incentivar, legitima que pessoas brancas insistam em fraudar as cotas raciais.