Jornal Estado de Minas

ANCESTRALIDADE

Carta a Abdias do Nascimento


Ei, Abdias, já faz um tempinho que queria trocar algumas ideias com o senhor, mas toda vez que pensava em entrar em contato, batia uma timidez e um certo receio de, talvez, incomodá-lo. Mas enfim, respirei fundo e tomei coragem para escrever esta carta, ciente de que estou escrevendo para um ancestral que também é um dos maiores intelectuais brasileiros. Então, que Exu me conceda este axé de fala para esta conversa que eu sempre quis tanto ter.





Sábado passado (18) foi inaugurado lá em Inhotim, na cidade de Brumadinho, o terceiro ato do Museu de Arte Negra, e usaram o nome “Sortilégio”, isso mesmo, usaram o nome da primeira peça de teatro que o senhor escreveu. Eu já tinha ido nos dois atos anteriores. Aliás, eu e quase todos os artistas e intelectuais negros que moram em Belo Horizonte e na região metropolitana. A exposição da obra me proporcionou reencontrar pessoas da militância negra que, há tempos, eu não via pessoalmente, em razão da correria da vida e do isolamento social imposto pela pandemia. Andávamos um tanto quanto desanimados com a conjuntura política, até porque o seu livro “Genocídio do Negro Brasileiro” está mais atual do que nunca, mas as exposições nos deram um respiro, um fôlego novo. Os olhos das pessoas brilhavam ao verem as obras escolhidas pela curadoria para compor o acervo da exposição.

Confesso que já tinha lido seus livros, seus poemas, seus discursos do período que foi senador e, por isso, tinha noção de sua genialidade, astúcia e perspicácia. Infelizmente, cheguei tarde neste mundo e acabou que não consegui assistir a nenhuma peça do teatro experimental do negro, mas a Léa Garcia me contou um pouquinho sobre como foi essa vivência e a Ruth de Souza me mostrou diversas fotos das peças em um momento de nostalgia. Foi possível sentir a satisfação dela em ter integrado esse projeto tão necessário que o senhor idealizou.

Talvez em razão dos dois últimos atos, dos livros que li e dos relatos que ouvi, tinha certeza que o senhor não teria mais nada que pudesse me surpreender, porque sua obra intelectual me deu régua e compasso para andar de cabeça erguida ciente da nossa força e atenta aos perigos constantes. Através do seu livro “Quilombismo", tivemos uma resposta para combater o racismo institucionalizado em nosso país, propostas de soluções, antecipação de temas. O senhor descortinou novos horizontes sempre com a verve, a profundidade e a indignação inerente a um filho de Ogum que nunca resignou. Portanto, já me dei por satisfeita pelo senhor me ensinar a guerrear, sem saber o que me aguardava ao adentrar, juntamente com outros jornalistas, a galeria da Mata lá em Inhotim. 





Foi naquele momento que, além de sentir, eu vi a beleza dos orixás nas telas, o encantamento e a magia tomava conta de mim toda vez que parava diante de uma das tantas obras que o senhor pintou. Me reconectava com a minha ancestralidade e sentia emergir a força através das cores e dos traços.
 
(foto: Tiago Nunes)
 
Senti a proteção de Yemanjá, a paz de Oxalá, a fertilidade sadia de Oxum, senti os caminhos abertos pelo nosso pai Ogum, a cura de Omolu, a força de Nanã e Oxumarê que nos ajuda a manter a continuidade entre a vida e a morte, nos dando o equilíbrio do cosmo e da alma. Iansã me fez entender porque não sucumbimos entre os ventos e as tempestades ao deixarmos o nosso próprio continente.

Mas, vamos combinar, entre os Orixás, Exu era, certamente, o que tinha mais espaço na exposição, era “Exu e três tempos de roxo”, “O vale de Exu”, “Exu-Dambalah”, “Exu Black Power”. Esses são os que eu lembro nome, fora os outros, talvez em razão da sua capacidade de mensageiro e soprar em nosso ouvidos sempre a melhor estratégia. Só de lembrar, eu fico emocionada com o poder das cores e da força de Xangô e Oxóssi.





Eu saí de lá e há quase uma semana e ainda estou pensando em uma estratégia de ter para mim, em minha sala, a “Oxum em Êxtase”. Cheguei a me perguntar, se eu a pegasse e saísse tranquilamente pela porta, se alguém notaria que eu estava levando-a para passear tamanha foi a minha tristeza em ter que ir embora e deixá-la lá. Vou tentar voltar para revê-la, já que o terceiro ato fica disponível para visitação até o dia 6 de agosto deste ano.

Durante todos os atos, eu fico me perguntando o porquê de Inhotim não se render logo à sua genialidade e abrigar, de forma fixa, suas obras em uma galeria chamada “Abdias do Nascimento”.

O senhor se lembra do Jorge dos Anjos? Aquele artista plástico que fez o portal de Iemanjá lá na Pampulha. Também é outro artista que eu não entendo o porquê de ainda Inhotim não colocar em seu acervo público. Se o senhor tiver as respostas, me conta, porque aguardo ansiosa por esse entendimento.

Beijo, minha despedida é um muitíssimo obrigada por ter nos deixado um legado negro de intelectualidade, arte e beleza.