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Estado de Minas RACISMO RECREATIVO

Aquela boca sem dente

'Quem cotidianamente utiliza as redes sociais muito provavelmente já se deparou com memes de pessoas negras banguelas sorrindo, que têm como intuito o humor'


30/03/2023 13:00 - atualizado 30/03/2023 13:48

Ator Rodrigo Sant'anna caracterizado como Adelaide, uma mulher preta sem os dois dentes da frente
Personagem Adelaide do extinto programa Zorra Total (foto: TV Globo/Reprodução)

Não é, e nem nunca foi novidade, que muitas pessoas negras tiveram que, em algum momento da vida, escolher entre pagar uma consulta odontológica ou comprar comida. A questão é: o que tem de engraçado nisso?

Quem cotidianamente utiliza as redes sociais muito provavelmente já se deparou com memes de pessoas negras banguelas sorrindo, que têm como intuito o humor. São diversas figurinhas no WhatsApp, posts no Instagram, no Twitter, no Facebook e até no TikTok, nos quais a degradação da saúde bucal das pessoas negras são retratadas para alegrar o público e fazerem as pessoas sorrirem e se divertirem.

Quantas vezes você riu e achou engraçado esse tipo de conteúdo? Quantas vezes você parou para pensar sobre o quão violento e cruel é utilizar a miserabilidade e a falta de acesso aos serviços de saúde básicos de uma pessoa para se divertir?

Todas as pessoas que fizeram um orçamento em um consultório odontológico e tiveram a sensatez de comparar o valor cobrado pelos dentistas com o valor do salário mínimo conseguem compreender o quão inacessível é esse tipo de tratamento para um assalariado. Agora, imagine o que é para uma pessoa adulta assalariada com dois filhos que dependem financeiramente dela? Imaginou? Pois então, essa é a realidade de inúmeras famílias brasileiras.

Só quem já sentiu uma dor de dente, precisou ir ao dentista, que detectou que era necessário fazer um canal, e teve que “optar” pela  extração por ser menos cara, consegue de imediato entender que um meme desse é tudo, menos engraçado. É sim, necessário e urgente abordar de forma ampla os diversos tipos de racismos, inclusive o recreativo, que é tão naturalizado, mas não menos nocivo.

Embora o SUS ofereça, em algumas de suas unidades, o serviço de saúde bucal, o tempo de espera geralmente é longo e nem sempre possui a estrutura para atender tamanha demanda e os inúmeros procedimentos necessários. É simplista argumentar e responsabilizar a degradação da saúde bucal à falta de higiene, até porque muito provavelmente você escova seus dentes no mínimo três vezes ao dia e, semestralmente, você vai fazer a limpeza com um profissional. Pelo menos, é o tempo recomendado pela categoria.

As plataformas de redes sociais têm possibilitado a ampliação da desumanização, ridicularização e menosprezo das pessoas negras. Esses memes reforçam e reafirmam uma série de preconceitos arraigados em relação a um grupo de pessoas. As atitudes das pessoas no ambiente virtual não estão dissociadas do ambiente em que as relações ocorrem de forma presencial.

Em outras palavras, uma pessoa que entende como engraçada a falta de acesso à saúde de uma pessoa, retratando-na de forma cômica em seu ambiente corporativo, caso se depare com um colega com tais características, também fará desse colega alvo de gozações e constrangimentos. E se essa mesma pessoa é a responsável pelo recrutamento, muito provavelmente nem contratará a pessoa que não tem dente, porque faz parte do perfil da vaga, mesmo que não esteja escrito nos pré-requisitos ter dentes.

Não é possível achar engraçado a careca de uma pessoa que perdeu os cabelos em razão de um tratamento de quimioterapia, tampouco se deparar com alguém que precisou amputar algum membro e fazer dela um meme para que outras pessoas se divirtam. Então, porque seria engraçado uma pessoa que tem dificuldades para se alimentar e tem que enfrentar diversos transtornos por não ter dentes? Falta de acesso à saúde não é engraçado. 

É importante trocar a naturalização do racismo recreativo por um pensamento crítico e consciente, e isso não é se privar do acesso ao humor.

Se os potenciais dos memes fossem utilizados também para reivindicações de uma  construção e implementação de políticas públicas intersetoriais e de saúde mais equânimes, diminuindo a vulnerabilidade desse grupo para que seus direitos fossem garantidos e suas peculiaridades reconhecidas, e possibilitando a construção de acessos, muito provavelmente agregariam na viabilidade de resgatar a cidadania e melhoraria o acesso à saúde bucal.

Aquela boca sem dente é muito mais que uma boca: é a retratação fiel da desigualdade social, racial e do desprezo e da falta de empatia de quem, mesmo sabendo disso, se diverte e ri da miserabilidade alheia.

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