Jornal Estado de Minas

ARTIGO

Cuidado, é branco


É óbvio que nem todo branco é racista, mas isso não muda o fato de que todo branco se beneficia do sistema racista da sociedade.  Até porque esse sistema hierarquiza as relações e oferta privilégios em que o beneficiado por ele, ainda hoje, acredita e defende que tudo isso  é mérito de seus esforços. Ao se negar avaliar o quão bélico e eficiente é esse acesso ao privilégio da brancura, o branco acaba por se indignar muito mais ao ver alguém com o fenótipo parecido com o dele ser criticado, questionado e punido por alguma ação de conotação racista, do que quando vê uma injustiça que culmina na morte de um negro.





Exemplo disso se deu na última terça-feira (16), quando o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o comediante Léo Lins deletasse um espetáculo de seu canal de Youtube. O vídeo, publicado em 2022, contém piadas contra minorias da sociedade, de acordo com o entendimento do TJ-SP. Para a juíza Gina Fonseca Correa, a gravação, com mais de 3 milhões de visualizações, estaria “reproduzindo discursos e posicionamentos que hoje são repudiados”. Além de deletar o vídeo, a sentença também determina que o humorista não transmita, publique ou mantenha em dispositivos arquivos de “conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer outra categoria considerada minoria ou vulnerável.” 

Diante dessa situação, o também humorista Fábio Porchat saiu em defesa do seu colega de profissão e se posicionou contrário à decisão judicial. Se posicionou contra o impedimento imposto ao Léo Lins de reproduzir conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, etnia etc e tal. Sabe qual é o argumento dele? “Não gosta de uma piada? Não consuma essa piada.” Em um dos trechos de seu texto publicado no Instagram, Porchat diz que humoristas têm o direito de ofender: “Ah, mas faz piada com minorias… E qual o problema legal? Nenhum. Dentro da lei pode-se fazer piada com tudo tudo tudo. Não gostar de uma piada não te dá o direito de impedir ela de existir. Ainda mais previamente. Impedir o comediante de pensar uma piada é loucura. Mesmo que você não goste desse comediante, mesmo que você despreze tudo o que ele diz, ele tem o direito de dizer. Ele tem o direito de ofender. Não existe censura do bem.” 

Até aqui nada de novo, não é mesmo? O que esperar de um homem cisgênero,  heterossexual branco e rico que não sabe e nunca vai saber o que é ser preterido no mercado de trabalho em razão do sistema escravocrata que deixou como herança o racismo? Qual é o problema de usar o palco para promover o racismo recreativo? Qual o problema de usar o humor para assediar moralmente pessoas em razão daquilo que as excluem e as privam de acessos à direitos de cidadania plena? Ao ler o posicionamento de Porchat, chego à conclusão que, para ele, não há nenhum problema.  Para o humorista é uma vergonha inaceitável a proposta de prevenção que zela pela proteção moral das minorias sociais. O riso branco, racista, misógino, homofóbico é mais importante do que a crueldade do maior crime da história mundial que foi escravizar seres humanos baseados na raça, etnia e religião. O riso branco, racista, misógino, homofóbico pode tudo, inclusive continuar violentando e reforçando como natural as injustiças sociais impostas às pessoas com fenótipo diferente do Léo Lins e do Fábio Porchat.
 
(foto: Reprodução)
  
O racismo assume diversas faces para continuar presente e naturalizado. Sem dúvida nenhuma, o escárnio, a humilhação e a hierarquização através da linguagem reforçam, de maneira eficaz, a perpetuação das mazelas imposta a essa parcela negra que assiste seus jovens serem assassinados de 24 em 24 minutos. Mas o importante é rir, não é mesmo, Porchat? E reforçar o corporativismo através do pacto narcísico da branquitude, afinal, como você bem diz, você é um racista em desconstrução e não podemos cobrar de você que compreenda o quão belicoso é o racismo recreativo presente nessa frase disfarçada de piada dita por Léo Lins: “negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim”.