Descreva nos mínimos detalhes as características físicas daqueles cincos garotos que saíram para se divertir e nunca mais voltaram porque foram alvo de 111 tiros. Qual era a cor da pele, a textura do cabelo e os traços faciais? Você consegue puxar na memória e fazer um retrato falado daquela senhora chamada Claúdia Ferreira da Silva que foi baleada e, em seguida, arrastada por 350 metros pela viatura da polícia que a socorreu? Se sua memória não está colaborando, jogue no Google e repare, de forma minuciosa e com criticidade, a corporeidade da menina Agatha Vitória Sales Felix; do menino João Pedro; do João Alberto Freitas; da Marielle Franco – essa, aposto que você se lembra. Jogue no Google Imagens, também, o nome da deputada estadual de Minas Gerais Andreia de Jesus, que durante um longo período foi ameaçada de assassinato sistematicamente a ponto de ser a única parlamentar dentre os 77 eleitos a ter que viver escoltada por segurança armada.
A racialização é um marcador hierárquico elaborado pelo opressor para determinar quem é mais humano e quem pode ter sua humanidade retirada. A raça é um dispositivo de segurança que coloca em risco de morte constante as pessoas negras e indígenas. Portanto, se você não é um ALVO CONSTANTE, não adianta se autodeclarar negro baseado na leve ondulação do seu cabelo e justificar que sua negritude é herança de um ascendente remoto negro. Muito menos se reter ao fato da sua pele não ser o tom mais branco da paleta, ignorando propositalmente a realidade de ter nascido em um país tropical com praias paradisíacas, como são as do Brasil, onde se bronzeia com facilidade estilo ACM Neto.
Negro não é fantasia de carnaval, não é remédio psiquiátrico para quem tem problema de identidade e se encontra em um limo racial. Até porque as pessoas negras não ficam no limo, não são chamadas de macacas pela primeira vez na vida adulta. Na realidade, são abordadas de forma truculenta e vexatória pelos agentes das forças de segurança ainda na adolescência, sentem o desprezo dos adultos e de outras crianças ainda na infância. Pessoas negras não fazem chá de revelação de sua negritude, porque quase sempre essa descoberta é traumática e violenta.
A razão de ser das políticas de promoção da igualdade racial, que ofertam reservas de vagas para pessoas negras na universidade, por exemplo, se dão para amenizar danos irreparáveis como os que citei. Não para alavancar e colocar em destaque brancos que, em algum momento, se sentem preteridos porque não se encaixam no padrão de beleza imposto por outros brancos e que, para justificarem para si e para os demais o preterimento, recorrem a um único traço, a um único marcador de negritude em seu corpo. É recorrente presenciarmos o branco radicalizar o outro e se colocar como universal, agora muitos deles escolhem serem brancos quando convém, mestiços quando convém, agora usando a “partitude” para se autodeclarar negro também quando convém.
Mas esperar o quê de um povo que nos escravizou, nos humilha, nos explora, nos insulta e nos discrimina? Que se conscientizem e não esvaziem a pauta não se autodeclarando negro por razões existenciais. Não vai rolar, não é mesmo? Portanto, se faz necessária e urgente a vigilância civil, a vigilância constante por parte de quem tem que desviar a cada 24 minutos de uma bala de fuzil para não perder o acesso às políticas de promoção de igualdade racial conquistadas. Além de ser um alvo ambulante, é necessário resguardar o que já foi conquistado. Não é raro encontrar pessoas brancas que, agora, se autodeclaram negras porque se sentem envergonhadas ou não se identificam com o proceder dos brancos na história. Isso pode até parecer inofensivo quando essa autodeclaração não se dá ao pleitear acesso a uma política pública, mas quando a pessoa branca que faz isso tem uma visibilidade, é pública ou famosa, ela valida outras pessoas a se autodeclararem negras sem o ônus de realmente serem.
Fazer essa vigilância civil hoje é ser taxada e taxado de forma pejorativa de “Porteiro de Wakanda” por aquelas pessoas que relativizam o racismo, porque se propõe monetizar a pauta. Quem é preto e preta de nascença neste país sabe muito bem que nossa realidade está muito longe da de um conto de fadas que lucra financeiramente nos cinemas mundo afora. Mas se para fazer a vigilância civil dos direitos conquistados é preciso se candidatar a vaga de porteiro de wakanda, então vamos lá, o que não dá é deixar que uma pauta tão importante seja banalizada e esvaziada aos poucos e de forma tão eficiente como vem sendo feito.
Quando negros fizerem isso e apontarem os brancos que se passam por negros, muitas vezes serão taxados como porteiros de Wakanda.