Peregrina deixou de ser só mais uma mulher negra escravizada quando assassinou a golpes de machado e pilão a sua sinhá Maria do Carmo Pinto Teixeira. Foi em uma casa pouco abaixo da prefeitura, ali na rua Direita no centro da histórica cidade de Sabará. Peregrina ficou famosa e deixou sua marca na história do primeiro povoado mineiro, mas ela não agiu sozinha contou com a ajuda de Roza, Luísa, Tecla, Balbina, Quitéria e Jesuína.
A documentação da sentença eu vi com os meus olhos que a terra ainda há de comer e está no arquivo público da cidade, na Casa Borba Gato. Peregrina e Roza foram enforcadas no dia 14 de abril de 1858 em um patíbulo montado bem em frente da igreja Nossa Senhora do Carmo, a igreja que a falecida sinhá frequentava, a igreja dos brancos e probos e que na época era proibido que pessoas negras adentrassem. Não, não foi no acervo público que eu tive contato pela primeira vez com a história do ato de revolta e vingança dessas mulheres. Foi com o documento na mão que eu tive certeza que os brancos também as conheceram e as reconheceram deixando o seu ato registrado.
A oralidade é uma preciosa forma de transmissão de saberes e foi em um bate papo informal dentro da casa onde tudo isso aconteceu que fui apresentada a essas minhas ancestrais. Então, deixa eu contar a história que a história não conta?
Peregrina tinha acabado de dar a luz a um menino que não parava de chorar, ela fazia de tudo para compreender o motivo do choro, a dor que possivelmente estava sentindo, examinou os ouvidos, fez chazinho, fez massagem na barriguinha e nada de seu pretinho parar de chorar. Dona Maria se aproximou e pediu para pegar a criança no colo. Peregrina cogitou não entregar sua criança, mas ela era só uma propriedade da sinhá assim como filho, dona Maria não pede, manda, ela entregou a criança. Ao pegar o menino a sinhá o mediu dos pés a cabeça com um olhar de desprezo e o arremessou contra a parede e em seguida disse: problema resolvido.
Tomada pela raiva Peregrina ao invés de chorar o assassinato do filho se vingou de imediato deferindo golpes de machado em todo o corpo da sinhá, as outras escravizadas Roza, Luísa, Tecla, Balbina, Quitéria e Jesuína não ficaram de braços cruzados e trataram logo de ajudar Peregrina a concluir o que havia começado. É lógico que deram um jeito de condenar rapidamente essas mulheres, já pensou se vira moda escravas matar as senhoras? Essa história é conhecida como o último enforcamento de Sabará. Mesmo Peregrina utilizando um machado que é a arma de Xangô para fazer justiça sentia na medida que ouvia a história que ela é filha de Ogum e de Oyá assim como eu e talvez por isso me sinto tão herdeira desse dom de não me resignar.
Tem um adinkra chamado Sankofa, que é representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás. A etimologia da palavra Sankofa , em ganês, inclui os termos san (voltar, retornar), ko (ir) fa (olhar, buscar e pegar) ou seja, nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás. Nesse Julho das Pretas em que celebramos no dia 25 o dia da mulher negra latino americana caribenha é importante relembrar que nossos passos vêm de longe, que nossa resistência vêm de longe.
Eu peço a benção e dedico meu carinho, amor e admiração à Peregrina, a Roza, a minha mãe, as minhas avós, e também às outras mais velhas que me inspiram a resistir na luta, são elas: Nilma Lino Gomes, Rita de Amorim, Sueli Carneiro, Petronilha, Conceição Evaristo, Benilda Brito, Diva Moreira, Zora Santos, Valdete Cordeiro, Neuza Santos, Lurdinha Siqueira, Maria Mazzarelo, Cida Moura, Cida Bento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Maria Hilma, Luiza Bairros, Denise Pacheco, Leda Maria Martins e tantas outras que não vai ser possível citar aqui. Como bem diz a preta poeta, Julia Elisa, nós somos o sonho mais insubmisso de nossas ancestrais.