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Estado de Minas COLUNA

Carta aberta ao Presidente Lula

'Mesmo sabendo que o voto é secreto quero dizer que sou sua eleitora há pelo menos 20 anos, ou seja, metade da minha vida eu votei em você'


15/09/2023 17:20
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Etiene e Lula
(foto: Arquivo pessoal)
Me disseram que é muita ousadia eu uma mulher preta querer trocar uma ideia com o presidente da república. Mas aí eu parei um minutinho para avaliar, eu sou uma jornalista graduada via PROUNI com bolsa integral em universidade privada. Assim como outras pretas da minha geração, a primeira da minha família a acessar o ensino superior. E quem me possibilitou o acesso ao estudo e entender que o básico não deve ser tratado como privilégio foi o senhor ao revolucionar a vida de milhares de pessoas que nunca entrariam em uma universidade sem a política de educação desenvolvida pelo seu governo. Foi só depois de concluir a graduação que pude entender o que minha vó queria que eu entendesse quando ela dizia que atrás de morro tem mais morro.  Atrás do morro da graduação veio a especialização, o mestrado e agora eu prestes a completar quarenta anos de idade estou no doutorado de uma universidade federal no melhor programa de pós em comunicação do país de acordo com a avaliação da CAPES. Já que me propus escrever vamos diretamente ao assunto porque nem você nem eu temos tempo a perder. 
 
Eu me chamo Etiene Martins, sou mineira daqui da cidade de Belo Horizonte e mesmo sabendo que o voto é secreto quero dizer que sou sua eleitora há pelo menos 20 anos, ou seja, metade da minha vida eu votei em você. Todas as vezes que você foi eleito presidente contou com o meu voto e as vezes que não votei em você votei na sua indicação. Inclusive fiz o L na última eleição, por esse motivo me sinto no direito de  escrever  essa carta pública e trocar uma ideia. Eu não sei bem o porque, mas na medida que escrevo essa carta eu me lembro de uma carta que minha conterrânea Lélia Gonzalez escreveu quando se desfiliou do PT, que ela deu o título de racismo por omissão, o senhor se lembra? Essa carta me venha a cabeça por causa da exclusão constante que mulheres e homens negros vem sofrendo na sua atual gestão. Logo nós que sempre estivemos com você,  logo você que nunca teria sido eleito sem os nossos votos. Não é mesmo? 
 
Pois é, como você bem sabe nós mulheres negras somamos um quarto da população brasileira. E por incrível que pareça não somos um quarto da quantidade de ministros que você nomeou para trabalhar aí do seu lado, não somos um quarto dos quadros de primeiro, nem de segundo e nem de terceiro escalão. A minha pergunta é: porque? Por que servimos para votar para te eleger e não servimos para estar conjuntamente pensando e construindo uma política de equidade e de promoção da igualdade racial e de gênero em todos os setores? Por que você nomeia em sua maioria homens e brancos, sendo que eles são numericamente minoria na nossa sociedade? Ah já sei, vai dizer que são articulações políticas necessárias e que eu não vou conseguir entender, não é mesmo? Articulações políticas feita por partidos de direita, de esquerda que inclusive o PT está envolvido e ativo na missão de diminuir o valor da verba para campanha eleitoral direcionada a parcela negra e feminina que se propõe a candidatar. Os homens brancos possuem setenta por cento da verba para fazerem o que bem querem e agora querem metade da verba que garante a possibilidade de nós pessoas negras pleitearmos um cargo no legislativo ou no executivo. Sei que você vai falar que isso é coisa de partido e que mesmo fazendo parte do partido não vai se posicionar, não é mesmo? Lélia Gonzalez já falava dos racistas por omissão e espero verdadeiramente que você não se alie a eles, não faça o jogo deles por que daqui seguimos te acompanhando, observando e aguardando que a política elaborada por  aí nos contemple em todos os sentidos exatamente como é o nosso direito.
 
Temos apenas 30% da verba eleitoral e somos 56% da população. Avalie e me diga se é justo 56% ficar com 15% da verba? Não seja indiferente Presidente, porque assim como o Gramsci eu odeio os indiferentes e não dá para entender o silêncio diante de tamanha injustiça com as pessoas negras. Se isentar é se posicionar da maneira mais  cruel conosco. Eu sei que a fragilidade dos homens brancos que circulam próximo a você é cheia de complexidades e que eles não se dão conta desse assunto e vão logo apelando porque não possuem argumentos. Mas mesmo sem argumentos válidos estão pleiteando a anistia por não terem destinado a verba para pessoas negras e mulheres nas últimas eleições. Pedem anistia por terem sido racistas e nessa altura dos tempos não dá para perdoar quem se propõe a excluir o meu povo. Não dá para ficar em silêncio. Avisa para eles que nós negros e negras existimos e eles vão ter que lidar com isso.
 
Outro dia ouvi você dizer que o próximo ministro ou próxima ministra do Supremo Tribunal Federal é você quem vai indicar. Você falou firme, parecia irritado com as sugestões. Esse momento está se aproximando. Tenho certeza que você sabe, mas não custa nada lembrar que o STF tem 132 anos, já foram mais de 170 ministro e desses apenas três são mulheres, diga-se de passagem, brancas e apenas três são negros, isso mesmo homens e nunca na história do país uma mulher negra foi indicada para ocupar uma única vez uma única cadeira, mesmo a gente sendo um quarto da população brasileira. Eu particularmente acho que seria justo, urgente e necessária a nomeação de uma dentre tantas mulheres negras competentes e qualificadas para ocupar esse cargo. Você não acha? Tenho certeza que é injusto não nomear uma mulher negra. Seus companheiros brancos chamam essa reflexão, que estou dividindo com você, de identitarismo. Tudo que extrapole o que contempla ser homem, branco, cisgênero e heterossexual é taxado como identitarismo. Espero que você não compre esse discurso racista, machista e violento. Tenho que reconhecer que um crime que dura mais de 500 anos é difícil ser entendido como crime, fica tão natural todo mundo chegar lá menos a gente, em razão de sempre cercearem os nossos acessos à dignidade, mas conto com você para ter esse entendimento.
 
Eu queria te escrever para contar do último livro que eu li, da última viagem que eu fiz, mas como você pode notar tem tanto assunto urgente que segue matando meu povo que vou deixar esses assuntos mais agradáveis para quem sabe um outro dia.  Para me despedir quero compartilhar com você uma frase d seu falecido companheiro Florestan Fernandes: “enquanto não houver igualdade para o povo negro, a democracia racial será um mito."
 
Abraços e até qualquer dia.
 

 

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