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Estado de Minas FILOSOFIA EXPLICADINHA

Apostas online e o Jogo do Bicho

Por que as casas de apostas online são autorizadas a funcionar e o Jogo do Bicho ainda é contravenção?


02/04/2023 05:00 - atualizado 02/04/2023 09:08

Elemento da cultura popular, o jogo do bicho não poderia ser contravenção
O jogo do bicho é uma atividade tipicamente brasileira (foto: www.flickr.com/photos/lucypassos/5703803595)

 

A ideia de o jogo do bicho ser uma atividade ilegal nunca desceu bem à goela. Tenho que admitir: sou filho de uma contraventora. Minha mãe era apostadora assídua do jogo, que poderia ser transformado em patrimônio imaterial do Brasil. O higienismo pequeno-burguês pode afirmar um monte de coisas sobre essa prática, mas é inegável que ela é capaz de dar alegria às camadas populares e, de quebra, ainda opera uma pequena distribuição de renda.

 

Aprendi com minha mãe o gosto pela coisa. Com ela decifrei sonhos, talvez por isso meu gosto por Freud e a psicanálise. Em alguns dias, discutíamos a viagem onírica dela, na maioria das vezes ela perguntava sobre minhas imagens noturnas. O movimento interpretativo era digno de um Xamã, ligando fatos, pessoas e palavras, sempre sintetizada na figura de um animal. Sonhar com garrafa dava vaca, com o pai era o urso e quando sonhávamos com cobra aí era jogar no bicho mesmo e pronto. Me lembro desses e mais alguns. Depois, era escolher a distribuição do dinheiro com o lugar que o bicho poderia aparecer no sorteio. Na cabeça, do primeiro ao quinto ou milhar.

 

A borra de café também era infalível. Pior do que teste de psicologia, minha mãe conseguia ver cada coisa naquelas figuras indecifráveis que eu simplesmente me rendia ao mundo de imaginação, tentando enxergar alguma coisa ali. Pena que enxergava super-heróis, o escudo do meu time de futebol e, quando muito, algum parente próximo. Talvez minha inteligência imaginativa fosse muito reduzida, apontando uma certa tendência ao realismo absurdo, mesmo ainda não sendo leitor de Nelson Rodrigues.

 

 

 

Ao lado desse retrato simbólico do Brasil, para completar a dupla nacional, como arroz e feijão, queijo e goiabada, café e cigarro, torremos e cachaça, juntava-se ao jogo do bicho o rádio de pilha, que sempre ficava ligado em cima da mesa da cozinha, esperando a hora para coletar o resultado. Boa expectativa para verificar a numeração. Alegria com alguns raros acertos e muitas análises a respeito das falhas interpretativas e daquilo que poderíamos ter jogado. No entanto, sempre dormia feliz, na certeza de que alguém estaria ali, pela manhã, à espera de meus sonhos.  

 

Sociologicamente, já na vida adulta, sei que o jogo do bicho tem um efeito que extrapola minhas experiências infantis: é agregador, demarcando uma identidade sociocultural, contribuindo na geração de empregos e a afirmando a brasilidade. Já tentou explicar para um estrangeiro nossa jogatina? Os cassinos até tentam, mas ninguém chega aos pés de uma das maiores loterias ilegais do mundo.

 

O Bicho, bem antes das bitcoins - e você aí acreditando ser o mestre Jedi Day Trader - já operava na lógica do lucro volátil sem o controle do Estado, permeado pela confiança construída entre os apostadores e a banca, que sempre se responsabilizou pelas apostas. Tendo como referência apenas minha memória infantil, concluo que, diferentemente do mercado especulativo, o jogo do bicho sempre cumpriu com suas promessas, pois nunca vi bicheiro dando calote em nenhum vencedor. Pagavam em dia, de forma justa, e ainda patrocinavam o campeonato de futebol amador lá no bairro.  

 

Sinceramente, não consigo entender por que as casas de apostas online, que não geram nenhum emprego para as camadas populares, não possuem vínculo identitário com o Brasil, transferem capital para o exterior e ainda interferem nos resultados das partidas do futebol ainda continuem funcionando na legalidade, mas o Jogo do Bicho continue sendo visto como contravenção.  

 

E ainda tem um fator ético preponderante: em toda lojinha de bairro, somente os adultos podiam jogar. Confesso que tentei muitas vezes, mas nunca fui autorizado. Só pude experimentar a graça do negócio com 18 anos. Após a primeira cerveja veio, também, a aposta no primeiro terno.  

Diferentemente das moedinhas juntadas com troco de pão, hoje vemos jovens viciados em gastar o dinheiro virtual dos pais, com acesso ilimitado aos aplicativos e sites de apostas, através dos dispositivos celulares. Estão caminhando como futuros clientes para uma demanda de mercado: acompanhamento psicológico para dependentes em apostas.  
 

 

Por toda essa história, já que as mais variadas bandeiras de lutas estão sendo erguidas nesse novo século, também vou construir a minha: Jogo do Bicho, legalize já! 

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