Desceu a rodovia Fernão Dias pensando na conflituosa relação entre o existencialismo e marxismo. De um lado a afirmação radical da liberdade. Na outra ponta, as correntes do materialismo histórico. Socialistas chamando sua filosofia de pequeno-burguesa. Outro grupo, composto por jovens pensadores, estavam insatisfeitos com o simplismo determinista de uma categoria chamada "classe social".
Fato é que, ao chegar em Belo Horizonte, foi influenciado a ir direto ao Café Palhares, pois queria conhecer o famoso Kaol, prato que desbancava qualquer iguaria da culinária francesa. No entanto, acabou travando uma briga sem igual com sua companheira, Simone de Beauvoir, pois a pensadora queria mesmo era almoçar na Cantina do Lucas, reduto da juventude politizada.
Depois de uma discussão acalorada, cheia de xingamentos hegelianos e ofensas kantianas, aquele amor platônico, demonstrado pelo casal durante toda a viagem, se transformou em um pessimismo schopenhaueriano, obrigando Sartre a afogar as mágoas lá no Caldo no Nonô, na companhia de algumas pessoas que acabara de conhecer.
Depois de muita conversa e cerveja, convenceram-no a conhecer a famosa rua Guaicurus, lócus da boemia. Mesmo sem entender muita coisa, lá foi nosso filósofo... Afinal, nossa vida é essa: subir Bahia e fazer o que não presta. No início da famigerada esquina, resolveu entrar na primeira placa, brilhante, que avistaria.
Ficou espantado com tudo. Muita gente, subindo e descendo, portas se abrindo, músicas e cheiros... Não era um ambiente muito desconhecido, pois lembrava seus tempos de estudante na École Normale Superiéure, de Paris, quando ainda era um jovem sonhador. Agora estava ali e relembrava suas ambições literárias enquanto, no meio disso tudo, uma mão o puxou para dentro de um quarto e fechou a porta.
- Ei, você não é Sartre, o Filósofo?
Com seu pouco conhecimento de língua portuguesa, ficou feliz em ser reconhecido, pois andou todo aquele tempo e ninguém lhe ofereceu as devidas honras. Mas ali, pela primeira vez em Belo Horizonte, se sentiu valorizado, mesmo sabendo que esse sentimento não fazia de qualquer existência um ato especial.Mas justamente ali , no meretrício, teve a devida fama.
- Olha... - disse a moça de meia idade - li tudo que chegou sobre você! Mas quero te dizer uma coisa: esse seu pensamento sobre a liberdade , o absurdo da existência, a contingência da vida e tudo mais não passa de teoria para universitário europeu. Você acha mesmo que uma mãe, com três filhos para criar, goteira no teto e conta da CEMIG para pagar tem algum tempo para a angústia existencial?
O francês não teve dúvida: tratava-se de uma marxista ferrenha. Acabava de sair de uma conferência pesada, onde tentou justificar todos os conflitos filosóficos existentes entre a matéria e o espírito, na relação daquilo que podemos escolher e o nosso poder de decisão, mas era questionado, novamente, sobre o núcleo duro de sua teoria: o fato de o ser humano construir um projeto de si, ainda que espreitado por certas condições sociais.
Não conseguia convencer a profissional sobre o princípio da liberdade, muito menos explicar o fator constituinte do ser humano, a náusea. Todos os argumentos eram rebatidos pela realidade dura daquela existente que, com inteligência avassaladora, possuía consciência de suas escolhas e decisões, mas apontava que todas elas foram feitas determinadas pelo seu ser social que, antes de ser um indivíduo, já era uma classe e, como tal, estava mergulhada, até o pescoço, na tensão entre capital e trabalho.
- Não há muita escolha abaixo da linha do equador, meu caro Sartre. Proferiu a cortesã, dando por encerrada a conferência da Guaicurus.
Testemunhas oculares disseram que nosso pensador saiu às pressas da alcova libertina, atravessando a rua atordoado, andando entre ônibus, taxis e ambulantes, em direção à Santa Tereza.
Ao chegar na esquina da rua Divinópolis, lentamente acendeu seu inseparável cachimbo e ouviu, do outro lado da rua, um grupo de amigos tocando uma linda melodia que, no meio de acordes e versos, dizia: "neste clube a gente sozinha se vê, pela última vez. À espera do dia, naquela calçada, fugindo de outro lugar".
No fundo de seu coração desejou que Beauvoir, Castor, estivesse ali. Naquela canção, retrato da vida, tinha acabado de desistir de uma vida só e livre.