Até hoje, ninguém elaborou uma filosofia da delicadeza. Logicamente, não serei eu a fazê-la. Mesmo porque é possível que ela não seja objeto de estudo filosófico, na medida em que está acima de construções racionais e disposta de forma lógica em teses que ninguém vai ler.
A delicadeza é fruto da vida real. Nasce no café torrado em algum rincão e chega na mesa de desconhecidos, passeia pelas ruas dos grandes centros urbanos à procura de gente simples que enxerga além de vitrines. Mais que a racionalidade, ela é o que melhor define a humanidade. Cuidado para não confundir com gentileza, pois esta é resultado da cidadania, nada mais que isso.
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Geralmente, é a virtude dos santos, subversivos que não foram doutrinados pela administração do tempo, pela burocracia dos corpos e pelo emburrecimento das almas. Já percebeu a diferença de uma casa construída pelo arquiteto da moda e aquela que você entra e percebe a delicadeza em todos os detalhes? O vaso de plantas disposto ao lado janela, a luz solar disputando com o sombreado da cortina... Não adianta o LED, nenhuma organização paisagística será capaz de artificializar a delicadeza das histórias que se encontram naqueles que decidiriam construir um lar. É por isso que nenhum primo com dinheiro irá reproduzir o acolhimento do cheiro do fogão de lenha que incensava a casa da tia que morava na roça.
Amigos no bar, bêbados conversando ao redor da mesa de plástico. Não é um cenário retrô, mas a expressão real da delicadeza daqueles homens que compartilham um copo de cerveja ao redor de causos que sustentaram uma vida inteira. Somos mais felizes quando a delicadeza se torna um comportamento, entranhada na identidade de quem a pratica.
Observe: é possível sentir o cheiro de gente desamada a quilômetros de distância. O passo pesado, como se carregasse todos os pecados do mundo, sustentando apenas seus próprios erros, o olhar automático e a alma vazia de algo que lhe dê significado. Brigam por nada, gesticulam no trânsito e estão sempre dispostos a culpar alguém pela infelicidade que escolheram. A delicadeza não os elegeu como filhos prediletos.
Ao contrário, quem pratica a delicadeza caminha de forma leve, como se fosse conduzido por Villa Lobos, pela poesia de Manoel e pelo cheiro de roupa limpa que materializa o cuidado de uma mãe amparando o filho em seu primeiro dia de aula.
Disse Fiódor Dostoiévski "a beleza salvará o mundo". Com o passar dos anos, me dei o direito de discordar dessa máxima, pois somente a delicadeza será capaz de salvar a humanidade. Aquela depositada no bolo de fubá preparado por sua avó, receita que nenhum ChatGPT (ou inteligência artificial) será capaz de reproduzir. Talvez esse seja o grande segredo para resgatar nossa perdida sobriedade humana.