Jornal Estado de Minas

FILOSOFIA EXPLICADINHA

Elis Regina, entre o artificial e a imortalidade

 

O sonho da imortalidade é tão antigo quanto a história. Desde quando aprendemos a enterrar nossos mortos, pedimos aos deuses a vida eterna. No entanto, esse é o tipo de desejo que, na sabedoria daqueles que habitam terrenos mais elevados que os nossos, decidem não escutar. 





 

Nada mais tedioso que a imortalidade. Por mais que, em um primeiro momento, pareça tentador, esse é o tipo de sonho infantil que traria mais prejuízo do que vantagem. Primeiro, porque a alegria eterna não pode ser chamada de felicidade. Segundo, neste mesmo pacote viriam, também, as dores eternas e as enfermidades incuráveis. 

 

A mortalidade cumpre uma função especial: nos lembrar que o nada nos espera. Nas palavras de Freud, o bom velhinho da psicanálise, a vida caminha em trilhos para a morte. Essa é a grande certeza que nos assegura a radicalidade de cada dia vivido. 

 

Saber disso faz toda a diferença na forma de conduzir a existência. Para aqueles que sofrem, a certeza de que um dia chegará o fim de tudo, a libertação da dor, das doenças e das tristezas profundas. Para aqueles que não sofrem, a valorização vital do momento presente como forma única de se relacionar com as pessoas, tomar decisões e projetar a vida. Não morrer seria o pior castigo para nós, viventes que já sofrem com a aleatoriedade do real. 





 

Vale lembrar a figura de Ulisses, herói grego responsável pelo Cavalo de Troia, estratégia que deu vitória aos gregos no conflito. Sua última prisão, a ilha de Calipso, era muito agradável. A presença de uma deusa belíssima e suas ajudantes sensuais, vinho e churrasco, com todo o prazer disponível. No entanto, ele deveria escolher: trocar sua felicidade, que residia na Ilha de Ítaca, ou viver a eternidade junto à deusa. A escolha de Ulisses é filosófica: melhor buscar a felicidade de um mortal do que a tristeza eterna. 

 

A nova fase histérica da parafernália tecnológica, construída nos últimos dez anos, promete, agora, ressuscitar os mortos. Aliada ao marketing, técnica especializada na produção de mentiras subservientes ao consumo, o despropósito tecnocientífico já tenta trazer à vida Elis Regina, Michael Jakson, Frank Sinatra, a sogra e até mesmo aquele tio que contava piadas engraçadas no almoço de domingo. 

 

A artificialidade da inteligência não deveria nos assustar tanto, pois já vivemos nela há muito tempo. Já somos pais artificiais, com relações mediadas por telas, conexões irreais e chips para acompanhar os passos dos filhos. Sentamo-nos ao redor de uma mesa tocados pelo touch rápido dos polegares. 





 

A maioria dos jovens terá sua primeira relação sexual com parceiros e parceiras virtuais. Os trabalhos são remotos e os amigos, pré-mortos. Os óculos de realidade aumentada já nos fornecem experiências de rua sem sair de casa. Em pouco tempo, jogaremos nosso futebolzinho de domingo deitados no sofá de casa. Os remédios psiquiátricos já nos garantem a felicidade dependente das pílulas diárias. Somos artificiais faz tempo. Nenhum espanto aí. 

 

A novidade de hoje é que estamos unindo a sociedade artificial ao antigo sonho da imortalidade. Talvez esteja aí o grande perigo que surge no horizonte. Lacan, que morreu, um dia nos alertou: cuidado com o desejo, pois ele pode se realizar.