Cronos é a divindade da mitologia grega identificada com a temporalidade das coisas. Ela é conhecida por devorar os próprios filhos, limitando-os à vida dentro de si. A metáfora é bela e triste: nada resiste à fome do tempo, o Deus que devora mortais, os próprios deuses e, também, as pedras. O apetite crono-lógico é insaciável.
Precisamos resgatar a narrativa mitológica, pois vivemos uma doença silenciosa: a aceleração. O mal do século, talvez do milênio. Ingenuidade acreditar que a mudança dos meios de comunicação, das revoluções tecnológicas e da indústria 4.0 não alterariam a estrutura social do tempo.
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Vivemos apressados. Corremos o tempo todo acelerando vozes, negando privacidades, alterando espaços, pulando faixas e visualizando vídeos. Nossa melhor imagem: sujeitos correndo em esteiras, em uma escada rolante de um shopping qualquer, subindo e descendo sem sair do lugar.
O filósofo Foucault, em seus estudos sobre biopolítica, já apontava para uma importante transformação contemporânea: a decadência do sujeito de desejo e sua transformação em indivíduo-empresa.
A modernidade tardia, época estranha em que vivemos, acelerou as estruturas sociais de uma forma tão intensa que moldou cada pessoa como um empresário de si mesmo. É fácil nos encontrar, bastar correr do nosso lado, quantificando e pulando entre urgências e emergências, tratando os contornos vitais como um verdadeiro negócio (o negar o ócio), a forma materializada de microempresas Individuais.
A aceleração afasta o amor. Ele, ao contrário da pressa, exige paciência, sobriedade, sabedoria e disposição para se organizar de uma forma oposta à lógica da meta-custo-lucro-retorno. É preciso ter cuidado, pois o modo como gastamos o nosso tempo diz muito de quem somos.
Educar os filhos? Se tornou mera questão de investimento. Depositamos neles as cifras que um dia esperamos, de alguma forma, receber no futuro. A vida entre casais? Cada vez mais “planilhada” e, quando tomam lugar à mesa, é apenas para conversar sobre as finanças do lar, dívidas e organizações financeiras.
Idosos? Analisados por meio do “custo-benefício” (termo que invade as dimensões existenciais), várias famílias acham melhor depositá-los em asilos. Afinal, todos em casa estão trabalhando, sem tempo para o cuidado daqueles que nos antecederam. Ainda assumimos o argumento canalha: melhor para eles. No entanto, a verdade pulsa diante de nós: não temos tempo para doar para aqueles que gastaram, gratuitamente, seus momentos apoiando-nos a ser quem somos. E fizeram isso justamente em uma fase que só dávamos prejuízo, sem produzir nada.
A desgraça da aceleração do tempo invadiu, inclusive, o futebol. A celeridade dos jogos beira à precipitação. Técnicos com suas telinhas e seus marcadores de desempenho, controlando jogadores a partir de condicionamentos robóticos e desapaixonados. Saudade de um jogo cadenciado. O futebol-veloz é o oposto do futebol-arte.
O que é, pois, o tempo? Reflete Agostinho de Hipona em suas Confissões, rastreando o tema ao longo de páginas dotadas de grande profundidade estética. É pena ele não ser mais motivo de reflexão filosófica. Ausentes da filosofia agostiniana, lidamos com ele a partir de uma lógica de inimizade. Ora querendo dominá-lo, ora querendo vencê-lo. Época triste em que o tempo deixa de ser professor.
Urgência? Só no amor. Mas cuidado! A burocracia do indivíduo-empresa irá tentar lhe convencer, a todo tempo, do contrário. Eles são velozes para isso.