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Estado de Minas FILOSOFIA EXPLICADINHA

Lugar de Fala. Falácia ou censura?

Certos pensadores digitais com tendência populista tentam reforçar práticas de cancelamento, nome clean para a velha censura


11/09/2023 10:33 - atualizado 14/09/2023 08:26
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Quais grupos serão responsáveis pela decisão do direito de falar?
Quais grupos serão responsáveis pela decisão do direito de falar? (foto: https://www.flickr.com/)

 

Quanto mais um intelectual se aproxima da militância, maior é seu distanciamento de um caminho de sabedoria. Lógico que os assuntos políticos interessam às pessoas que se dedicam às coisas humanas. No entanto, o engajamento partidário é capaz de embaçar a visão daqueles e daquelas que se dedicam às análises da realidade.

 

Basta lembrar a figura de Sócrates, condenado a tomar uma dose de cicuta pelo status quo ateniense. Desde então, a política sempre foi inimiga dos pensadores. Políticos profissionais, quando se aproximam da filosofia, operam na instrumentalização, na subserviência do pensar a favor de causas estranhas à liberdade. Essa opção reduz a construção filosófica, prática de autonomia individual, às vontades histéricas de grupos especializados. Quando isso acontece, vivemos um empobrecimento do ato reflexivo. 

O exemplo mais recente é o suposto conceito “lugar de fala”. Quase impossível negar que determinadas pessoas, vivendo determinadas experiências históricas, ligadas às identidades, gêneros ou classe social, se manifestam com maior propriedade em relação a assuntos que estão na pauta do dia. No entanto, a tentativa de reduzir o debate ao posicionamento desses sujeitos históricos é uma prática de cerceamento.

Existe aqui uma diferença que sempre passa despercebida, e nunca sabemos se é por intenção ou descuido intelectual: há um salto abissal entre falar “no lugar de alguém” e “falar sobre um tema sensível a alguém”.

 

Alguns pensadores digitais com tendência populista tentam reforçar práticas de cancelamento, nome clean para a velha censura. É claro que essa ação sempre nos chega com um “verniz de bondade”, focados na boa intenção de deslocar o pensamento hegemônico, ressignificando a participação das identidades no debate público. 

O interessante é que esse tipo de pensamento vigora, basicamente, entre a classe média escolarizada, pertencente à população que recebe mais de dez salários-mínimos de renda per capta e luta por espaços e bolsas em grupos de pesquisa nas grandes universidades brasileiras. Este não parece ser um tema relevante nos diversos pontos de ônibus espalhados na grande metrópole.  

 

Talvez por fugirem da aula de lógica, adeptos desse conceito desconsideram a sustentação falaciosa desse argumento. Desde a antiguidade clássica, quando ganhamos de presente a lógica formal, sabemos que os argumentos ad hominen são falácias especializadas em desqualificar “quem fala” com o objetivo de não discutir o teor, o conteúdo do que se fala. Em certa medida, é a famosa sabedoria popular: desmerecer o carteiro para não receber a correspondência.

 

O lugar de fala parte da seguinte premissa: só é possível falar de um assunto aqueles ou aquelas que, de alguma forma, estão em posição desfavorável a esse tema. Levado às últimas consequências: só pode criticar a tortura quem já foi torturado; só é permitido falar sobre endividamento da população quem está endividado; só é possível criticar a opressão quem já foi (ou é) oprimido. Olha o cheirinho de falácia no ar... 

Aí é que a coruja da sabedoria alça voos questionadores sobre esse tema: será que a posição social de alguém o garante, automaticamente, como legítimo debatedor de determinado assunto? As condições histórico-sociais fazem de alguma pessoa, espontaneamente, portadora de argumentos verdadeiros e válidos?

 

Assumir essa postura diante do debate público nada mais é que utilizar as armas da exclusão, prática abominável que tentamos extirpar das relações sociais. Além disso, não é tarefa simples decidir, previamente, quais indivíduos deverão participar de cada debate. Qual instância social será responsável por essa definição? A quem (ou a qual grupo) será destinada a tarefa de delimitar os participantes? O Estado? Os movimentos sociais? Os departamentos de pesquisa das Universidades? As páginas das redes sociais?   

É preciso ressaltar que não se trata de alijar a possibilidade de participação das camadas menos favorecidas e das minorias na construção do pensamento coletivo. No entanto, assumir a premissa do “lugar de fala” é caminhar, de forma contraditória, à construção de uma sociedade livre e esclarecida, onde todos podem (e devem) participar do debate público, fundamento imprescindível de uma filosofia autônoma e livre.

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