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Estado de Minas FILOSOFIA EXPLICADINHA

Nativos digitais e analfabetos sociais: o celular e a sala de aula

A mudança do 'homo sapiens' para o 'phono sapiens' já causa diversas situações problemáticas em nosso meio


21/10/2023 08:57 - atualizado 23/10/2023 16:48
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Precisamos restringir o uso do celular nas escolas
Precisamos restringir o uso do celular nas escolas (foto: labdicasjornalismo.com)

 

Os impactos causados pelos celulares e aparelhos portáteis ainda renderão inúmeras discussões, pesquisas e debates. Colhemos alguns resultados no presente e outros serão verificados, apenas, a longo prazo. No entanto, é notório que a mudança do homo sapiens para o phono sapiens já causa diversas situações problemáticas em nosso meio.

 

É preciso acompanhar de perto essa transformação antropológica e não assumir uma postura passiva, acreditando que toda transformação é, necessariamente, positiva. Na filosofia, chamamos isso de dialética, conceito que aponta para as contradições, oposições da história e da vida. Toda iluminação traz consigo as sombras. Por isso é importante falar dos aspectos críticos da revolução digital.

Como é bom ter um adulto de estimação que resolve todos os problemas! 

Não podemos desconsiderar que os smartphones contribuíram para a segurança entre as relações parentais. Afinal de contas, o celular já ajudou em muitas emergências no contato imediato entre pais e filhos. Esse ganho é indiscutível. No entanto, é preciso ressaltar que os dispositivos móveis estão impactando, consideravelmente, o desenvolvimento da responsabilidade e da maturidade de filhos e estudantes.

 

A instantaneidade do contato atrasa a elaboração do ocorrido e isso impacta diretamente o desenvolvimento moral do indivíduo, pois ele acaba perdendo uma aprendizagem fundamental: a habilidade para resolver problemas de forma autônoma.

 

Sem o apoio do celular, o estudante, ao tirar uma nota indesejada ou ao se envolver em algum conflito com amigos, ainda tinha todo o dia para elaborar o acontecido na escola, geralmente na presença dos pares.

 

Ao chegar em casa, o ocorrido já estava bem elaborado e, muitas vezes, resolvido por ele mesmo. Caso fosse algo grave, aí sim levaria ao conhecimento de seus responsáveis. O passar do dia e das horas encontrava ressonância simbólica naquele sujeito que aprendia a conquistar, de forma autônoma, a narrativa relativa ao seu dia e, portanto, a construção de sua história.

 

Agora é diferente. Um fato acontecido é imediatamente relatado. Geralmente, pais que estão no trabalho ou em outras atividades atendem o filho e percebem que ele está angustiado, chorando ou em algum aperto. É natural que o narcisismo e a insegurança, fatores inerentes à relação entre pais e filhos, se sobressaiam ao calor do momento. Em ímpeto de super-herói, o responsável começa sua cruzada pessoal, ligando, pedindo posicionamentos e relatórios à escola. Cuidado. Pais inseguros criam medrosos.

 

O desenvolvimento da autonomia, fundamental para qualquer sujeito, fica impactada na medida em que a insegurança de jovens e adolescentes encontram válvula de escape no contato direto com adultos de estimação. Resolver suas próprias questões é uma característica fundamental para “adultescer”.

 

A mediação constante e imediata de um adulto acaba criando um vínculo de dependência moral e emocional, a partir de uma sensação de impotência que irá impactar, fundamentalmente, a vida de qualquer pessoa. De forma inconsciente, a insegurança reforça um sentimento de incapacidade diante dos desafios, na certeza de que sempre surgirá alguém para “salvá-lo” da vilania da vida. Esperar sempre um herói, resolvedor de todos os problemas, é um atestado de que o sujeito ainda não saiu de seus registros infantis. 

Se acesso todas as respostas pelo celular, qual o sentido em fazer uma prova? 

O desespero diante de um teste se tornou corriqueiro. Fato contraditório, pois a geração Z, que aprendeu a “dar estrelinhas” para todo e qualquer serviço, se mostra frágil diante qualquer tipo de avaliação.

 

O ato de fazer uma prova, ou um exame qualquer, é um exercício de solidão. Ali, diante de perguntas e questionamentos, cada pessoa deve buscar dentro de si raciocínios lógicos que comprovem uma aprendizagem.

 

Acostumados às respostas imediatas, que não geram raciocínio lógico, crianças e jovens entram em desespero quando são questionados sobre algo que deveriam saber. Alguns tratam isso como ansiedade ou pânico, no intuito de patologizar a relação de aprendizagem. Lógico que alguns consultórios, devotos da indústria farmacêutica, se beneficiam financeiramente dessas situações.

 

A segurança de uma aprendizagem consolidada é reflexo de um processo de conhecimento autêntico. Não saber algo diante de uma prova é um evento normal e acompanha o estudante desde que a primeira escola foi fundada.

 

No entanto, o desespero diante do não-saber já é fruto de nossa época, que criou a ilusão de que qualquer informação está disponível na palma da mão. Quando crianças e adolescentes se percebem solitários, diante de um teste, ficam perdidos, pois a bússola informativa que as orientava não pode ser acessada naquele momento. 

Não quero causar mal a ninguém, apenas compartilhei uma imagem... 

A sociedade da imagem, potencializada pela incubadora de idiotas das redes sociais, aponta para uma grave questão ética relacionada à forma como compreendemos a subjetividade alheia, o corpo do outro e a história das pessoas que, na maioria das vezes, não conhecemos.

 

Alguns adolescentes e jovens pegaram gosto pela coisa e distribuem imagens de gente em situação humilhante, obscena e violenta. Quase sempre, sem o consentimento daqueles que, a partir de um toque, estão com a face divulgada entre milhões de desconhecidos.

 

Jovens compartilham imagens uns dos outros, descolando aquele rosto ou aquele corpo de uma história, de uma vida. Afinal de contas, imagem não sente, não tem pai, mãe e irmãos, nem sequer possui algum sentimento. É apenas um contorno colorido em uma tela. Por isso é comum ouvir de algumas pessoas – mas foi só uma foto.

 

Além de ser uma questão ética, pois opera na manipulação de uma história alheia, é, sobretudo, uma atividade criminosa, na medida em que, a qualquer clique, é possível expor qualquer pessoa, desconsiderando seu legítimo direito à privacidade e expondo sua honra e dignidade a partir de situações vexatórias. 

Livros de papel são coisa do passado, o sucesso está na aprendizagem é digital! 

Essa é uma meia-verdade. Não importa se gostamos ou não da revolução digital, caminharemos, agora, com ela. Dispositivos móveis serão encontrados em todas as instituições e transformarão as relações sociais. No entanto, essa inserção não pode ser tratada como um movimento de substituição, mas como complementariedade.

 

Algumas leituras podem ser feitas por telas. Outras, exigirão um tipo de concentração que só o livro pode oferecer. Em comemoração ao centenário de Ítalo Calvino, um amante dos clássicos, podemos recuperar uma bela transcrição de seu livro “Se um viajante em uma noite de inverno”: “Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!’ Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’ (…) Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se.”

 

Toda leitura atenta é um mergulho, um silenciamento. É impossível adquirir uma concentração apropriada diante de tantos estímulos e telas. Não é à toa que todos os países de primeiro mundo estão lutando para banir o celular de sala de aula, tendo-o como um elemento contrário à aprendizagem.

 

O último relatório da Unesco aponta que “o uso de smartphones nas salas de aula leva os alunos a se envolverem em atividades não relacionadas à escola, o que afeta a memória e a compreensão”. 

Enquanto você dá aula eu fico milionário com as apostas online! 

É público e notório que, em pouco tempo, teremos uma série de viciados nas apostas online. Qualquer adulto que convive com jovens entre 14 e 18 anos sabe que grande parte deles acessa esse tipo de site. Estamos criando uma legião de dependentes que necessitarão, em médio prazo, de medicação e/ou clínicas de reabilitação.

 

Durante a aula é comum encontrar estudantes, financiados por responsáveis, dedicando inteiramente seu tempo no acompanhamento de jogos e apostas de quaisquer modalidades. Tudo começa com pouco dinheiro, investimentos de pouco valor. Mas, como todo vício, a coisa vai crescendo e ficando incontrolável, a ponto de comprometer os estudos e as relações sociais.

 

A partir do smartphone qualquer criança ou jovem é capaz de apostar e acompanhar jogos em grande parte do mundo. Muitos adultos sabem dessa prática, mas pensam que é apenas uma forma de entretenimento e diversão. Quase toda atividade viciante começa assim e é transportada para casos clínicos, que envolvem uma recuperação lenta e dolorosa. 

A grama do vizinho é sempre melhor, o instagram então... nem se fala! 

Acompanhamos estarrecidos que, em uma década, as tentativas de autoextermínio entre jovens de 15 a 25 anos, no Brasil, cresceram mais de 40%. Somos o país que mais utiliza as redes sociais via dispositivos móveis. Crianças e jovens estão entregues, diariamente, a todo tipo de exposição na rede mundial. Nós, que não deixamos uma criança de 10 anos comprar pão na padaria mais próxima, pois a rua se tornou um ambiente inseguro, não nos importamos que eles naveguem para qualquer parte do mundo com qualquer tipo de pessoa.

 

Comparações, normatizações de corpos e comportamentos fazem parte do dia a dia de pessoas que tentam chegar a um padrão inatingível e, muitas vezes irreal, de beleza e felicidade. Com isso, é possível traçar uma relação direta entre o desencanto que muitos jovens manifestam com a vida cotidiana e o acesso descontrolado às telas.

 

Luci Pfeiffer, presidente do Departamento Científico de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e Adolescência da SBP, alerta para a imensidão de estímulos nas redes sociais, contendo conteúdos impróprios, mas que são acessados diariamente. Desafios, incitações à autoagressão e ao autoextermínio, fotos digitalmente modificadas e estímulos ao consumo desenfreado fazem parte do cotidiano das famílias e entram nas casas pela janela da frente. Segundo a especialista, as redes e as mídias sociais incitam, inclusive, a padrões de normalidade inalcançáveis, causando sofrimento em crianças e jovens que buscam, de alguma forma, sanar essa angústia de “perfeição”. 

E nós, o que faremos com isso? 

Nós, pais e mães, parentes e responsáveis, professores e agentes públicos, devemos nos colocar em franca discussão a respeito da utilização dos dispositivos móveis e seus impactos no cotidiano de nossas crianças e jovens.

 

Não é possível continuar acreditando que tudo isso é normal. Ou pior, que faz parte de um processo de evolução humana. Não existe uma relação direta entre progresso tecnológico e desenvolvimento moral. Se a tecnologia caminha na velocidade da luz, a ética necessita de tempo e elaboração para seu desenvolvimento. Não podemos agir como se nada estivesse acontecendo, ou simplesmente seguir a mais nova modinha de pensamento, afirmando que todo o futuro cabe em um smartphone. Em meio a sofrimentos e descasos, somos convocados a tomar atitudes corajosas. 

 

Família e escola, chegou a hora. Vamos decidir sobre o papel e o lugar do celular na vida de nossos filhos e estudantes? 

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