Lembro-me como se fosse hoje. Nos derradeiros anos da década do 80, quando várias das ditaduras militares implantadas na América Latina agonizavam ou já tinham morrido, duas frases, pichadas nos revolucionários muros da Pátria Grande, se fizeram omnipresentes: “quando sabíamos as respostas, nos mudaram todas as perguntas!” e a outra, “será que existe vida antes da morte?”. Ambas expressavam duas angústias ainda presentes hoje no nosso povo, maioritariamente pobre e espoliado. Por um lado, a dificuldade de chamar vida a uma existência sofrida e indigna, colocando a esperança de que ela aconteça, finalmente, no além; por outro, o destino histórico de correr atrás, sempre, de perguntas e respostas determinadas por outros.
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Pedro Casaldáliga viveu o que proclamava até as últimas consequênciasQuais as tarefas da filosofia na pós-pandemia de COVID-19?Global e local: um diálogo difícil e necessário em tempos de pandemiaA educação e suas encruzilhadas em meio à pandemiaNo mundo da hiperinformação, falta o velho espírito comunitárioA pergunta já é protagonista desde os primórdios do pensamento filosófico. Sócrates (circa 469ac – 399ac) nos propõe o seu método maiêutico, também conhecido como “ironia socrática”. A maiêutica, que significa “dar à luz”, “parir o conhecimento”, é um método que pressupõe que, "a verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase ingênuas, porém perspicazes". Aristóteles (384 ac–322 ac) também aborda o tema: “A admiração sempre foi, antes como agora, a causa pela qual os homens começaram a filosofar. Procurar uma explicação e admirar-se é reconhecer-se ignorante”.
Descartes (1596–1650), considerado o pai do racionalismo e o primeiro filósofo moderno, defendeu a tese de que a dúvida metódica é o passo inicial para se chegar ao conhecimento. Em duas das suas obras, Discurso sobre o método e Meditações, ele criou as bases do discurso científico. Descartes quer provar que quem duvida é sujeito de algo. Daí o “penso, logo existo” (Ego cogito, ergo sum). Nesse sentido, Karl Jaspers (1883–1969) vai afirmar que “as perguntas são mais essenciais para a filosofia que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta”. Ou Merleau Ponty (1908–1961): “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
Mais recentemente, Foucault (1926–1984) afirma que “a resposta não interessa tanto quanto a pergunta, muito mais fundamental para uma vida emancipada”. Foucault, reconhece os limites impostos pela soberania da razão burguesa, baseada na credulidade, na aversão à dúvida, na parcialidade, na precipitação nas respostas, no pedantismo cultural e no receio de contradizer, dentre outras causas.
Trazendo isso para a escola, fazemos uma constatação simples e inquestionável: as crianças pequenas, do Infantil ou do Fundamental I, perguntam mais, mas muito mais, do que os estudantes do Ensino Médio, por exemplo. Por que será? Na infância tudo nos causa admiração e, a partir daí, vamos construindo o nosso conhecimento. Na adolescência a pergunta vai perdendo fôlego, e na idade adulta as perguntas são cada vez mais mediatizadas pelos nossos problemas existenciais, angústias e posicionamentos pessoais. Funciona a autocensura de forma quase que permanente, em função da imagem que queremos causar e as certezas se consolidam, fazendo crer que perguntar é sinal de incompetência.
Num interessante diálogo entre Paulo Freire e o filósofo e educador chileno Antônio Faundez, ambos coincidem em “afirmar que a pergunta é o motor do conhecimento e propõem uma pedagogia da pergunta” (Por uma Pedagogia da Pergunta, Paz e Terra, 1985). Afirmam eles que, tanto professor quanto aluno se esqueceram das perguntas e do axioma de que todo conhecimento começa pela pergunta. Paulo Freire chama a isso de “curiosidade”, o que já envolve uma pergunta. Hoje, o ensino é muito mais resposta do que pergunta, tendo resultado no que Freire chama de “castração da curiosidade”. Somente a partir de perguntas é que se deve partir em busca de respostas e conhecimento, e não o contrário.
Empurrados pela urgência do momento histórico, somos convidados a embarcar numa avalanche de respostas, propostas, modelos e iniciativas novas, que apontam inúmeros caminhos e soluções de toda e qualquer pergunta. Mas, a questão que se nos coloca é esta: estamos realizando as perguntas pertinentes e adequadas? Elas tocam o cerne das necessidades e das urgências históricas? São capazes de ajudar a elaborar, desde a educação, outros modelos de sujeitos autônomos, de sociedades mais criativas e integradoras? Ou estaremos, apenas, tentando dar respostas novas, maquiadas, isso sim, a problemas mal formulados e modelos obsoletos e não integradores? Estaremos, com essas “novas respostas”, contribuindo com a verdadeira tarefa da educação, qual seja, a construção de indivíduos autônomos, emancipados e críticos, que colaborem na construção de uma sociedade igualitária, justa e inclusiva? Quais perguntas? Vale o apelo de Kant: “Sapere aude!”, atreve-te a conhecer!