Não tendo ainda chegado o carnaval, é certo que permanecemos em 2019. Deve ser por isso, concluo cá com meus botões, carcomidos pela maresia da vida, que o bisonho segue a nos assombrar. O bisonho e o ridículo caminham junto com o atleticano como sua própria sombra, a bola de ferro presa no pé.
Olho para a parede do quarto e vejo uma velha flâmula que me acompanha desde o pentacampeonato de 1982, quando este velho punk sequer dava notícia d’O Começo do Fim do Mundo, ali por aquelas priscas eras: “Bom mesmo é ser atleticano”, diz a frase, sob o desenho de um galo que à época ainda era galo e não o chester que hoje se apresenta. Quando apago a luz, posso ver a velha flâmula transmutar-se num rosto sinistro e um dedo que me aponta, a rir da minha cara. “Bom mesmo é ser atleticano.” Sei.
A quinta-feira foi de tango. O baile se deu com requintes de crueldade, aquele pênalti perdido, o contra-ataque, a expulsão. Um time de profissionais contra os casados da firma. Em vidas passadas, cada atleticano do mundo cometeu seu pecado mortal — queimou gente em fogueiras, praticou genocídios, incendiou florestas, escapelou gatos e cachorros. Reunidos todos entre os séculos 20 e 21, foram condenados a torcer pro Atlético e transmitir para os filhos esse gene defeituoso.
Em 2013 e 2014, eu estava certo de que o Atlético se tratava de uma “máquina de fazer homem chorar”. A definição consistia um achado capaz de encerrar todas as nossas virtudes, a raça, o amor, a fidelidade, a superação, isso tudo mergulhado no caldeirão do mais espesso merecimento. Em 13/14, me pareceu o fim da história, o desfecho perfeito de uma novela crispada de injustiças e traições, azares monumentais, cabeças de burro enterradas em nossos jardins. Dali em diante, estava óbvio, tudo seria diferente, o atleticano era o sapo e tínhamos finalmente sido beijados pela princesa. Sabe nada, inocente.
Nesse apagar das luzes de 2019, quando a mangueira nos entra antes da Mangueira entrar, estou convicto de que o Atlético é uma máquina de produzir ódio (no sentido da raiva, vai, porque o ódio se tornou por demais odioso na Nova Era). Tenhamos em conta a proximidade e parentesco entre o ódio e o amor, ok, mas o fato é que um jogo como o de quinta-feira desperta no atleticano os seus instintos mais primitivos, aqueles que o Roberto Jefferson sentia ao ver o José Dirceu.
Particularmente, tenho desejos homicidas, pensamentos impublicáveis. Não basta quebrar o Galo na Veia (até por já tê-lo quebrado antes), é preciso maldizer o Atlético, é necessário usar de todos os argumentos com seu filho pequeno para que ele largue desse vício enquanto é tempo, que isso é pior que a maconha, é pior que o crack. Residindo no Alabama do Brasil, é preciso convencê-lo das benesses de ser corintiano. Tudo, infelizmente, em vão. Mas pelo menos eu tentei. Quando a máquina de produzir ódio enfim vier a alcançá-lo, terei algum argumento para expiar a minha culpa.
É uma máquina de refinada tecnologia. Trabalha com doses cavalares, enquanto te mina também a conta-gotas. Veja o caso de Zé Welison. Quando ele surgiu, algo me disse que estávamos diante daqueles Emersons Conceições que, por crueldade com a gente, tornam-se no Galo longevos e insubstituíveis. Talvez seja o caso, também, de Di Santo. Ambos são o veneno a ser ministrado na veia, como um soro, só que matando de raiva pouco a pouco.
Vida que segue, diria o nosso Chico Pinheiro. Eis os nossos próximos confrontos: a URT, pelo Mineiro, amanhã, e o Campinense, pela Copa do Brasil, na quarta. Em 17º lugar em seu campeonato nacional, o que não é esse Unión Santa Fe senão uma URT argentina? Aliás, o Colón, que nos tirou da final da Sul-Americana no ano passado, seria o Mamoré, rival do nosso algoz de quinta-feira. Que fase...