Este escriba está de férias a partir de hoje. O texto que se segue é aquele publicado originalmente no caderno especial sobre o título do Atlético no Brasileirão de 21, lançado no dia seguinte à conquista do campeonato. Foi escrito na tarde e noite do dia 2 de dezembro, para sempre o Dia do Galo.
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Escondido de Deus, redijo estas linhas secretas antes que se tenha início a peleja de nossas vidas. É para ser esta a coluna do título e, por óbvio, deveria ser escrita depois do jogo. Mas, caro amigo, nada garante que eu terei sobrevivido. Que Deus não me repare aqui, como não reparou no torcedor que carregava duas estrelas amarelas no Mineirão lotado – ambos a cantar vitória antes da hora, como se não fôssemos aquilo que somos, galos escaldados.
Se estas imprudentes linhas estão diante de seus olhos, certamente marejados porque terá sido implacável a máquina de fazer homem chorar, então, deu tudo certo: o Galo ganhou. Meu Deus, o Galo ganhou! Belisquemo-nos todos: puta que o pariu, o Galo ganhou!!! O título impossível. Aquele pelo qual lutamos uma vida, nos fodemos, caímos, levantamos, acreditamos, desacreditamos, alguns pais se foram, filhos nasceram – e então, depois dessa vida… porra, NÓS GANHAMOS!
Nada no mundo, na noite de hoje, é mais importante do que este fato capaz de tocar até o gélido coração cruzeirense, até o mais safado dos flamenguistas: o Galo ganhou! E só um coração de pedra é incapaz de perceber o que paira sobre a atmosfera neste Dia do Samba, para sempre o Dia do Galo: o amor venceu. A vida sempre vence. E até os mortos que não viram estão agora presentes.
Para adiantar a peregrinação, já me encontro em Meca, a sede de Lourdes. Escondido de Deus. Há vendedores de faixas do Galo bicampeão. Desejo tanto comprar uma delas, meu objeto de desejo muito mais do que a casa própria, o carro, a cota do Minas. Aquela faixa é minha gargantilha de brilhantes, olho pra ela como a japonesa que olha para a vitrine da Tiffany na Via Condotti. Eu sei que ela vai ser minha daqui a poucas horas. Vou vesti-la como um operário que vestisse a faixa presidencial.
Choro. Só choro. Tem cara de chuva. Se choveu (esse texto é um exercício de ficção, que Deus o queira, amém), então, terá sido como na música dos Racionais, só que desta vez o homem lá em cima não se aguentou foi de felicidade: “Essa noite chove muito porque Deus chora”.
Choro, como todo atleticano, porque este dia esperamos por uma vida. Lembro a bandeira que comprei com meu pai para a final de 80 nas Lojas Bacana. Meu pai não gostava do Reinaldo, não gostava de futebol. Eu amava o Reinaldo. Eu amo o Reinaldo. A bandeira era a bandeira branca (e de fato ela era branca). Hoje também meu pai deve estar chorando, assim como chorou em nosso rebaixamento, quando, sentado num restaurante, viu atleticanos moribundos cantarem a nossa Marselhesa, naquela expressão de amor e dor que só a gente (e um verso da atleticana Adélia Prado) sabe transformar na mais rica de todas as rimas.
Meu filho, pré-adolescente, me escreve, paulistano capturado por essa nossa doença, a mais linda de todas as patologias, sem cura, sem vacina, sem tratamento precoce. Mas que, perigosa, pode levar à vida.
“Papai, eu vou de avião, de ônibus a mamãe não quer, eu quero ver o Galo campeão. Só preciso que você me diga que tudo bem, porque sabemos que você tem medo de avião. O Galo é o amor da minha vida, eu preciso ver, não quero ficar 50 anos esperando. Eu tenho 14 anos e um sonho de ver o Galo com a taça, eu amo esse clube, eu vivo o Galo e amo o Galo, obrigado por me fazer viver isso. Pelo Galo eu faço tudo”. Tadinho. Choraremos juntos daqui a pouco. E lembraremos pra sempre, mesmo quando o Alzheimer nos fizer esquecer nossos próprios nomes.
Um sujeito escreveu certo: a espera é de todos. O menino de 14, o jovem de 28, o adulto de 40, o velho de 80: todos, sem exceção, cumpriram 50 anos de espera. E agora que o Galo ganhou, todos brilham, irradiam, florescem. A vida venceu a morte, o amor bateu a desesperança.
O Galo campeão é uma vitória de todos.
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Voltei. O jogo acabou. O Galo ganhou. O GALO GANHOU!!! Olho para a sede, nossa Meca. Meus braços gigantes abraçam toda a quadra. Toda a Meca e toda a sua gente, que chega de pontos diversos, desafiando a greve dos ônibus. Eles vêm pelos ares, galos doidos em seus voos de galinha.
Aparentemente, sobrevivi. 3 a 2. O nosso placar histórico. Quando tudo parecia perdido, o 2 a 0 que, agora sem dúvida, é a nossa senha pra falar com Deus. O homem lá em cima viu o povo aglomerado, a variante nova, o sofredor, o desdentado abraçado ao cara do Mangabeiras, aquela lição de vida. Olhou e falou: “Deixa esse povo ganhar”.
Não poderia ter sido normal. A gente não é normal.
Até domingo, na entrega da taça, está proibido morrer.