Quando os estádios se elitizaram e as arquibancadas foram transformadas em enormes varandas gourmet, temi pelo resultado da harmonização facial que mudaria a cara da torcida do Galo. Sim, sou daqueles saudosos do copo de mijo voador, do incêndio que se fazia ao final dos jogos e do chope tirado a fórceps na fila inexistente dos bares, aquela muvuca de corpos suados e batedores de carteiras. Eu gostava daquilo. Eu gostava de sofrer.
Na quarta-feira, de passagem por Belo Horizonte, comprei na bacia das almas um ingresso para o jogo no superior laranja, o setor da Galoucura, atrás do gol em que o Hulk teceu a sua geometria da curva. Quando eu era menino, aquela gleba do estádio era conhecida por “torcida do América”. Lá ficávamos, os primos todos a sonhar com o dia em que poderíamos migrar com as próprias pernas para o furdunço total – o meio do campo, onde se instalava a Super Força Viva, pouco depois da FAO e abaixo da Charanga.
Então, na quarta, adentrei em carreira solo aquele território da minha infância, tomado pela famosa Galoucura desde 1984 – um pouco antes de concluir a migração e ganhar o meu green card na hoje extinta Força Viva, onde o sol fustiga a moleira e os fracos não têm vez. Confesso, tinha a expectativa apenas do furdunço moderado, afinal o cidadão de bens pagou o ingresso e quer ver o jogo, essa tarefa secundária a que dão absoluta prioridade.
Ledo engano, amigos, mas ledo para caralho! Embrenhei-me numa confusão dos infernos, entre pretos, caboclos, amarelos, brancos e cafuzos, pobres e ricos, homens e mulheres, bêbados chafurdados no chope morno e fundamentalistas da Igreja Universal do Reino do Galo em sessão de descarrego. Postei-me logo na escada, um chope em cada mão, de modo a receber toda essa carga de confusão e desvario, a energia catártica advinda do caos – o bate-cabeça, a roda punk, o pega pra capar.
Do outro lado, o demônio encarnado vestia vermelho e preto, de modo a despertar na turba os instintos mais primitivos aos quais se referiu Bob Jefferson. O ódio contra o Flamengo é tão natural quanto o ódio de um bolsonarista diante do amor.
Embebido desse nefasto porém incontornável sentimento, regurgitava sobre o inimigo (adversário é outra coisa) a versão melhorada desse canto gregoriano e portanto medieval: “Eu sempre te odiei, sempre vou te odiar! Tu és time de otário e c…., miliciano e ladrão!!!”. Aragão sacudia na tumba, Wright sentia no rabo a malaguetinha do Mercado Central, o fogo do inferno a aguardá-lo. Gratiluz!
É a varanda gourmet que vocês queriam? Então toma o chique no último! Eu vi, eu tenho provas: A Raça Fla, que na corrida é a melhor, parou pra ver as luzes do nosso mosaico. Coitada da Mangueira perto da torcida do Galo, coitado do Boi de Parintins, do Cirque du Soleil, do Super Bowl. Sem clubismo nem exagero: a turcidugalo é, de longe e de perto, o maior espetáculo da Terra.
Fica, Turco, pelo amor de Deus! Já não está mais aqui quem falou: de agora em diante, limito-me apenas ao Fora Bolsonaro. Desculpa, Nathan, se lembrei aqui, outro dia, que vens da mesma fôrma do Werley, o distraído guardador de jabutis. O Galo sozinho não tece a manhã, tamo junto! Caso seja necessário ajoelhar no milho, ok, somos todos galos. E se Hulk é por nós, quem será contra nós?
Meu amigo Rodolfo Gropen, que dirigiu o Conselho da IURG, gosta do sacrilégio de apontar um erro cometido por Vicente Motta, autor da nossa Marselhesa. O equívoco, perdoável, mas inequívoco, está em apenas uma letra. Uma letra D, intrusa e trapalhona. É quase um detalhe, mas, pra quem sabe ler, um pingo é letra. O vacilo do Vicente, apontado pelo Gropen, é que nós não somos DO Clube Atlético Mineiro. O Galo é o seu povo, e tem agora uma faixa enorme a corrigir finalmente essa mal traçada: “Nós somos O Clube Atlético Mineiro”. Pra bom entendedor, meia palavra bas.