Pense no seguinte: você tem dois encontros marcados para os próximos dias. Amanhã, estará frente a frente com o sujeito que entrou na sua casa, roubou o cofre e o dinheiro embaixo do colchão. Você ficou à míngua, e teve de começar tudo de novo.
Quarta-feira tem mais: você encara agora o miliciano que, pouco depois, bateu-lhe a carteira, confiscou sua poupança e apropriou-se das economias de uma vida inteira. Você ficou à míngua, e teve de começar tudo de novo.
É exatamente o nosso caso quando temos em sequência dois encontros marcados, com São Paulo e Flamengo. O primeiro roubou o Galo em 1978, quando se deu a decisão de 77. A indecente manobra de bastidor produziu um vice-campeão invicto e com dez pontos a mais que o campeão – uma enorme jabuticaba na qual chafurdaram alegremente os desavergonhados são-paulinos da época.
O segundo roubou o Galo em 80 e voltou à cena do crime em 81. Verdade que aquele era um time de sonho. As laterais tinham Leandro e Júnior, o meio tinha Zico e Adílio, a dianteira contava com Nunes. Mas o negócio era mesmo os homens-surpresa que tanto podiam atuar pelo lado do campo, segurando a bandeirinha, como flutuar em setores diversos, vestidos de preto ou amarelo. No Flamengo de todos os tempos, pode-se discutir qualquer um – menos Zico, Wright e Aragão.
Flamenguistas se incomodam com o fato de o atleticano jamais esquecer a História. Na verdade, estamos a encher-lhes o raio do saco em quantidade jamais vista, o que contribui para isso uma freguesia de cliente especial, com programa de fidelidade e milhas para dar a volta ao mundo. Saia vestido de Atlético pelo Rio de Janeiro e verá como se rasga um brioco com a unha, ainda que esta seja inexistente, devorada que foi na nervosia da última derrota. E já não há dedo o suficiente para a contabilidade do desastre.
Atleticanos nascidos com o fiofó virado pra lua, ou seja, aqueles que acabaram de chegar e já sentaram na janelinha, campeões de quase tudo na última década, fazem coro com os inimigos: “Chega desse trem, essa vitimização, esse pensamento derrotista!”.
Ah, vai cagar, sô! Deixem nós, os velhinhos, com nossas memórias esfumaçadas e nossas patologias incuráveis! Deixa a gente desejar o que quiser pro Wright e o Aragão, qual o problema? Eu mesmo “matei” José de Assis de Aragão em texto recente, quando o vi “revirar na tumba” diante de mais uma vitória do Galão. Foi um amigo quem se incumbiu do balde de água fria: “Fred, ele está vivo”.
Na manhã da última sexta-feira, este escriba concedeu entrevista a um professor universitário norte-americano que escolheu o Atlético como objeto de seu estudo sobre a “raça” (gana, denodo etc.) – conceito que, assim como a “saudade”, inexiste na língua inglesa. Lá pelas tantas, ele disse ter visto no filme “Lutar, Lutar, Lutar” uma cena em que este jovem senhor está entre o delírio e o infarto iminente na virada do Galo sobre o Flamengo nas semifinais da Copa do Brasil de 2014. Ele me perguntou se aquilo era amor.
No, David, aquilo era uma catarse e uma confusão mental composta por elementos de grande complexidade que formam o ser humano ao longo da vida. Aquilo não era futebol. Era eu diante do batedor de carteira, do estelionatário que me roubou os sonhos e a esperança, a crença em Deus e a confiança na justiça dos homens. E eu tinha apenas 10 anos. Era eu, ali, reavendo os meus pertences de uma vida, embora nada seja capaz de restituir as perdas daquele crime prescrito.
Atlético e Flamengo, assim como Atlético e São Paulo, estarão sempre envoltos nessa dor de alma – mas serão, sempre, uma chance para o nosso acerto de contas.