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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

Que se zere hoje o relógio da vida

O amor venceu o ódio em 2022. A Seita que dói menos. Um cara de Havaianas só deseja a paz. Eu vou torcer para o Brasil!


24/11/2022 04:00 - atualizado 24/12/2022 07:13

Sob o comando do técnico Tite, a Seleção Brasileira inicia nesta quinta-feira, contra a Sérvia, a caminhada rumo ao hexacampeonato mundial
Sob o comando do técnico Tite, a Seleção Brasileira inicia nesta quinta-feira, contra a Sérvia, a caminhada rumo ao hexacampeonato mundial (foto: Lucas Figueiredo/CBF)


Na minha já longínqua juventude, não havia nada mais importante do que a Copa do Mundo. Apenas uns poucos eventos eram capazes de rivalizar com o magnetismo daquele mês em que a Terra parava pra ver a bola girar – os assassinatos de Kennedy e Lennon, a morte do Papa. No entanto, eram tragédias fortuitas. A Copa do Mundo, não. A Copa do Mundo era o relógio da vida – contava-se o tempo de 4 em 4 anos.

Eu tinha 6 quando Mário Kempes ganhou em 1978, e meu pai torcia para o Brasil batendo com a mão na parede entre o alto da porta e o teto, no apartamento da minha avó, na rua Buenos Aires. Aquilo me parecia um salto com vara, um enorme voo do qual jamais me esqueci, uma extravagância performática que constitui a lembrança mais antiga da minha vida.

Em 82 eu tinha 10. Como disse o Erasmo: era um homem e entendia tudo. Já não torcia exatamente para o Brasil. Torcia para o Atlético. Para Luizinho, Cerezo e, sobretudo, o Éder. Torcia para o Telê, ainda que jamais o tenha perdoado por não ter levado o Reinaldo. Maradona é maior do que Pelé. Maradona é menor do que Reinaldo.

Quando o Éder fez o gol da vitória na estreia contra a União Soviética, era como se o Galo tivesse salvado a gente do comunismo. Coitado do Dasaiev. Corri do escritório do meu pai, no apartamento da rua do Ouro, atravessei o corredor até empreender um voo sobre o sofá de espuma onde duas Copas depois estariam mal sentados os pais da minha nova namorada, para tratar de uma gravidez inesperada – eu era uma criança e não entendia nada.

Em 86 foi culpa do Zico, aquele flamenguista. Em 90 eu bebia. E já não havia qualquer ilusão: eu tinha nascido em 72, o Galo era campeão brasileiro e o Brasil, campeão do mundo. Mas aí eu cheguei, o azar em pessoa, o corvo, pensava comigo.

Em 94, na disputa de pênaltis, eu me descompensei numa catarse etílico-proletária que evocava a luta de classes e o direito de a América Latina existir enquanto sonho de projeto viável. Ou seja, um bêbado que chora, um ateu que pede a Deus que se cumpra enfim o sonho da desigualdade superada, os fodidos contra os europeus, colonizados e colonizadores.

Quando Baggio chutou pra fora, abri a porta e corri, como que um endemoniado fugindo do pastor evangélico. Desci a rua do Ouro igual o Bolsonaro naquele meme em que rompe a linha de chegada, aquela pança perebenta e esfaqueada, aquele verme corredor.

Corri para abraçar o mundo. Um tio que me viu passar ligou para a minha mãe para dizer que não tinha nada a ver as bandeiras do Galo e do PT que eu levava nas mãos. Índios e padres e bichas, negros e mulheres, e adolescentes fizeram o carnaval. Chupa, Europa, aqui é latino-américa, respeita a favela! Até 25 de julho de 2013, que carrego tatuado no braço, essa era a minha “noção de felicidade” – a sétima pergunta do Questionário Proust.

Em 98 eu ri. De tão atleticano, decidi que não mais torceria para a CBF, não seria mais acometido por esta Síndrome de Estocolmo. Resisti até a final de 2002, quando perdi a voz pendurado pra fora do carro e vestido de seleção, o próprio patriota do caminhão, a grasnar “chora, cruzeirense imundo, Gilberto Silva é campeão mundo”.

Em 2006, o menino que viu o pai voar cobriu a Copa como respeitável jornalista do Estadão. Produziu cerca de 20 reportagens. Deu um jeito de enfiar o Atlético em todas elas. Trouxe para casa uma jaqueta do Borussia – o Galo da Alemanha.

Torci contra em 2010. Torci contra em 2014, menos para o Alegria Nas Pernas. A essa altura já havia lançado o Movimento Corrente Pra Trás, que visa à destruição da CBF. Em 2018, com a amarelinha sequestrada pela seita dos egressos do manicômio, aproveitei para jogar às traças minha velha camisa de 86.

Agora, na vila onde moro, litoral sul da Bahia, República Socialista do Nordeste, há bandeiras do Brasil espalhadas pela rua, bares e restaurantes. O amor venceu o ódio em 2022. A Seita que dói menos. Um cara de Havaianas só deseja a paz. Eu vou torcer para o Brasil! Que se zere hoje o relógio da vida.

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