Enquanto ordenho a pedra na intenção de escrever estas mal traçadas, pipocam os fogos de artifício, pavor dos cachorros e das pessoas de bom senso. Não, não é nenhum anúncio do movimento a indicar que chegou o ópio do povo. É dia de São Sebastião, padroeiro da vila onde eu moro, no sul da Bahia. Tem Heineken na vascaína. Tem samba e forró. A Bahia é a Galoucura do Brasil — esse povo sabe fazer uma festa.
São Sebastião é aquele todo flechado. Ainda reles mortal, foi capitão da Guarda Pretoriana durante o Império Romano. Certamente era antibolsonarista: achava que bandido bom era bandido vivo e tratado com dignidade, especialmente os cristãos. Motivo pelo qual foi julgado e condenado à morte por meio de flechas. Alvejado, foi dado como morto e atirado em um rio. O tio, no entanto, era um highlander. Sobreviveu atravessado por três setas, com as quais desfila por aí desde a arte medieval até o estandarte da minha sala.
Eu olho um atleticano e enxergo as setas a perfurar o manto sagrado. Mas penso que três é muito pouco pra nossa experiência de sofredor profissional, com mestrado e doutorado, PhD na arte de se foder. Mais correto seria um São Sebastião que, além das setas, arrastasse uma bola de ferro nos pés. Aí é nóis.
Claro que 2013, 2014 e 2021 foram anos de libertação. É como se o homem lá em cima tivesse olhado pra nós e, sentado na nuvem, tivesse perguntado a algum assessor: “Quem é aquele pessoal?”. O assessor: “Bem, o Senhor esqueceu esse povo no limbo desde que o Telê deixou de cumprir a promessa de caminhar até Congonhas do Campo e tomou um táxi, isso lá em 1971”. O sósia de Karl Marx: “Caraca, mas isso já prescreveu. Ordeno que esse povo seja feliz”. E assim foi.
Acontece porém que você não arranca suas flechas assim na buena, na tranquila, apenas porque baixou um decreto. O atleticano carrega as marcas da injustiça e do azar, e de seu eterno litígio com a ciência das estatísticas. Além do quê, tem aquilo que o Itamar Assumpção disse que o Leminsky disse: “Um homem com uma dor é muito mais elegante. Caminha assim de lado, como se chegando atrasado andasse mais adiante”. É nóis, sempre na beca, saído por aí com a camisa listrada — as setas e a bola de ferro. “Carrega o peso da dor, como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que o valha.”
No dia de hoje, com o Independência lotado, começa o ano do Galo. Com Coudet e sem Cuca. Com Patrick e Paulinho, sem Nacho e o único Jair que a gente respeitava. Com estádio novo a partir do Réveillon do atleticano, celebrado em 25 de março. Mas devendo até as cuecas, só bolsonarista no comando, que tragédia. Como São Sebastião, nóis enverga mas não morre.
E não é que não morre. O atleticano vive e é pra caralho. Nos anos das vacas magras, anoréxicas a bem da verdade, funcionou a tese da massa de pão: quanto mais bate, mais cresce. Time de preto, de favelado, mas quando joga o Mineirão fica lotado!
Enquanto caminhávamos com a bola de ferro e as flechas na corcova, enchíamos o papo de campeonatos mineiros. Só os arquifreguês. Hoje, contra a Caldense, vai começar tudo de novo. Seremos campeões. Do Mineiro e da porra toda. “Ópios, édens, analgésicos, não me toquem nessa dor. Ela é tudo o que me sobra. Sofrer vai ser a minha última obra.”
Viva o Galo! Viva São Sebastião!