Já fui testemunha de toda a sorte de desvarios em nome do Atlético. Não há amor mais fiel, todos sabemos. Como diz o outro, durante a vida se pode trocar de companheira ou companheiro, de religião, pátria, partido político, orientação sexual, e até de sexo. Mas não se troca de time de futebol – e menos ainda se o sujeito ou a sujeita é Galo, esse amor de uma vida inteira, a gente a Glória Menezes, o Atlético o Tarcísio Meira.
Em nome disso já vimos de tudo. Antigamente, no velho Mineirão, dava-se um jeito de pular o fosso que separava a geral e a pista de atletismo, e então se acessava o campo. A cada título conquistado, surgia o caminhante de joelhos a atravessar o gramado de ponta a ponta, a bandeira numa das mãos, a outra a agradecer aos céus. Um clássico do pagador de promessas.
“Aqui jaz um bom pagador” – o velho epitáfio serve ao atleticano que faz promessa tão ou mais do que o exterminador de boletos. Na verdade, trata-se de uma mesma gente, visto que promessa é dívida. E a promessa feita em nome do Galo não se parcela nem se perde o prazo. É como decisão do Supremo: cumpre-se.
Telê, então o técnico em 1971, prometeu caminhar de Belo Horizonte a Congonhas do Campo se o Galo fosse campeão brasileiro. Deus aceitou a barganha e Telê, na calada da noite, tomou um táxi. O Galo ficou 42 anos sem ganhar um título realmente importante. Telê perdeu as Copas de 82 e 86. Deus é foda.
Em 2013, quando lancei meu livro “O atleticano vai ao paraíso”, fiz um dia de autógrafos na sede de Lourdes. Formou-se uma enorme fila. Eu tinha que ter gravado os depoimentos. Era uma fila de hospício, só tinha doido. Cada um que se aproximava fazia questão de relatar seu ato de desvario, sua promessa cumprida, seu boleto quitado.
Um cara tinha os joelhos em carne viva: horas antes, dera voltas no quarteirão usando os meniscos no lugar dos pés. Outro trouxera o vídeo de sua façanha: correra não de joelhos mas nu em pelo, a tromba balangando em vergonhoso atentado ao pudor, minutos após o orgasmo do título. Um senhor, muito idoso, arrastou-se até a mesa. Tinha seus 90 anos. Apenas ergueu a manga da camisa, e em seu bíceps derretido pudemos ver uma enorme taça, recentemente tatuada do cotovelo até o ombro.
Tatuagens são desvarios à parte. Eu mesmo tenho o escudo de 1972; uma releitura do Galo Volpi com a data do título de 2013, boleto quitado; um Galo Caraíva, a marquinha do nosso consulado; um punho cerrado do Rei; e um 71/21, alusão aos 50 anos de espera pelo nosso bi.
A propósito, um amigo achou por bem tatuar os 50 anos nas pálpebras dos olhos depois de não acreditar no que via quando viramos o jogo do título em coisa de 5 minutos, o 2 a 3 eterno em Salvador. Escreveu “50” em cada olho. “50 anos num piscar de olhos”, explicou. Depois mandou fazer um galo desde a bunda até o pescoço. Outras vieram e outras virão. Só perde para a vovó que até 2019 tinha 44 galos na pele – “o galo sozinho não tece a manhã”, escreveu o poeta João Cabral de Melo Neto, alvinegro mas botafoguense, coitado.
O ramo dos casamentos também é uma importante vertente onde se pode verificar o nível dessa psicopatia a que se pode chamar galoucura. Um casal realizou o evento na calçada do estádio em construção. Ao invés do altar, tapumes de obra. Pense na autoconfiança daquele ou daquela que primeiro teve a ideia e fez a proposta.
Um primo meu casou-se com uma cruzeirense. Na igreja mesmo. Na sola de um sapato escreveu o número 9, em branco, bem grande. No outro pé grafou o número 2. Referia-se ao 9 a 2 eterno, a maior goleada do clássico Atlético e Crüzeiro. No momento mais importante da cerimônia, com a pobre da noiva ao seu lado, e diante do padre, ajoelhou-se. O 9 a 2 ficou então exposto para todos os convidados. Pagaram fotógrafo e tudo, mas foi essa a foto que rodou o Brasil.
É preciso mencionar, ainda, os suicidas. Todo mundo se lembra da cena de um sujeito infartado na cama de um hospital quando o Galo ganhou em 2013. Ele salta da cama, arranca os tubos todos e corre pela enfermaria aos gritos de “Aqui é Galo, porra!”, socando janelas e o próprio braço onde estavam os tubos, a receita prescrita para um novo e derradeiro ataque. Ao que parece, sobreviveu. Teve ainda aquele cara que, diante do gol, corre desorientado pela sala do apartamento e lança-se ao desconhecido por uma janela aberta, verdadeiro salto mortal.
Bom, isso tudo pra dizer que eu só não vi um tipo de maluco: o atleticano milionário que dá dinheiro pra gente. Pobres existem aos montes. Tiram do leite das crianças, no que está mais do que certo, afinal elas irão perdoá-lo tão logo estejam acometidas pela mesma galoucura, uma doença hereditária. Nunca vi um mecenas. São lendas urbanas, como a loura do Bonfim.