Naquela manhã eu ajudei o Francisco a vestir o terno, dei o nó na gravata, e tava pronta a sua fantasia. Antes que eu o levasse para a escola, ele foi se despedir da Fabi. Ela abriu os olhos ainda dormindo e viu aquele sujeito já bastante crescido, quase 1,80 metro, vestido, vamos dizer, como um advogado, um alto executivo, um jovem na sua armadura de homem. Entre o sono e a vigília, custou pra entender que era o seu menino.
Quando eu voltei, a Fabi me abraçou na cozinha enquanto eu lavava a louça. Com o jeito errático que a doença lhe havia proporcionado, me abraçou e chorou, emocionada: “Fred, hoje de manhã eu vi o Francisco adulto. Eu tinha tanto medo de não ver isso, mas hoje eu vi. E ele era um homem lindo”. Então eu disse pra ela que não era só o terno. Naqueles quase três anos de luta, ele tinha se tornado uma pessoa solidária e justa, íntegra e amorosa – e estávamos profundamente emocionados com isso.
A Fabi me viu chorar poucas vezes na vida. Quase 100% delas por causa do Galo. Nunca nas derrotas, porque faz tempo não choro nas derrotas, apenas nas vitórias. Ela estava comigo no Mineirão lotado quando o Galo foi campeão mineiro em 2010. Marques entrou no finzinho e fez o gol do título. Era a sua despedida. Então correu até o córner, pegou a bandeirinha de escanteio, pendurou nela a própria camisa, e fez daquilo uma bandeira. Eu chorei de soluçar e ela me olhou espantada. Ainda não entendia de Galo.
Viria a compreender o que aquilo significava quando a doença passou a provocar metástase para fora do corpo. Seis meses depois do diagnóstico, estávamos completamente falidos, já tínhamos dado o cano em todos os cartões de crédito, e não havia mais como pagar o aluguel. Eu guardava no quartinho da garagem os últimos 350 exemplares do meu livro do Galo, O Atleticano Vai ao Paraíso. O irmão Afonso Borges decidiu promover uma campanha de venda, expondo a delicada situação daquele atleticano que fora ao inferno.
Em pouco mais de 24 horas, enquanto a Fabi era submetida a uma nova cirurgia de cérebro, a torcida do Galo pagou todas as nossas dívidas. Fui inundado de mensagens vindas de dezenas de milhares de pessoas, numa corrente de amor que eu nunca havia experimentado. “Eu acredito, eu acredito”, repetiam o mantra de 2013, evocando o milagre de são Víctor. Eu não acreditava como o ser humano podia ser tão bom.
Eu tava sozinho na sala de espera. Podia ver o Mineirão lotado, e era como se aquela gente toda carregasse a Fabi numa palma da mão gigante, não tinha como dar errado. Eu vestia uma camisa do Galo, escondida sob a camisa de botões para que a equipe médica não me tomasse por um idiota. Quando a Fabi acordou da anestesia, eu disse pra ela: “A Galoucura pagou todas as nossas contas, e o amor dessas pessoas salvou a sua vida”. Ela disse que assim que melhorasse íamos agradecer in loco. Nunca conseguiu.
A Fabi não viu mais o Galo, mas viu Lula presidente (era importante pra ela que houvesse um país a deixar para o Francisco). Viu o Francisco um homem, ainda que uma miragem. E esperou pra me ver, já sem de fato ver, no último dia do hospital. Eu olhei pra ela, tentando fazê-la mirar os meus olhos, e soube do que se tratava. Lembrei os nossos 100 dias de hospitais e clínicas (teriam sido 200? 300?). A primeira tomografia nas minhas mãos, 8 da noite de um Réveillon, o diagnóstico chocante, a expectativa de vida na mensagem do médico, meu aniversário de 48 anos no hospital, meu aniversário de 49 anos no hospital, o Galo campeão no hospital.
A conversa com o Francisco: é irreversível, neguinho, a mamãe agora estará em cuidados apenas paliativos. Ele ficou paralisado, como que em estado de choque. Meu amor, a mamãe morreu.
Um amigo indigenista informa: há um povo que só considera que alguém morreu quando morre a última pessoa que se lembra da pessoa morta. “A vida sempre vence a morte”, me lembro do Chico Pinheiro falando da Páscoa quando deram o Lula por morto, na sua prisão.
Então me lembro do nosso primeiro beijo, na roda de samba da praça Roosevelt. A primeira vez que ela me mostrou Caraíva, ainda sem luz. O parto. A casa do Butantã. A casa da Vila Mariana. O apartamento da Bela Cintra. O de Perdizes. A casa onde estou. Os cachorros que se foram e os que estão vivos. O seu preferido, o estranho Fantasminha. Agora, na lousa em que ela anotava a lista do supermercado, permanece anotado com a esferográfica vermelha: “Bom fim de semana. Fabi. Mummy”.
É como a velha fotografia aérea que o Ferreira Gullar viu nos arquivos mortos que, funcionário público, tinha sido incumbido de eliminar. Mas ele, menino em São Luiz do Maranhão, devia estar lá embaixo (“Eu devo ter ouvido aquela tarde um avião passar”), “àquela hora dos legumes que ficaram sem vender, no sistema de cheiros e negócios do nosso Mercado Velho”. Agora tinha o papel em suas mãos, como a lousa na parede. “O papel que (se quisermos) podemos rasgar.”
Obrigado por tudo, Fabizinha, por tanto e por todos. Vou mandar fazer uma camisa do Galo escrito seu nome, para que você vá aos jogos e agradeça a essa gente maravilhosa. Francisco vai ficar com aquela sua assinada pelo Ronaldinho, usufruto deste que vos fala. Vou criar o bichinho como você faria. Cuide da gente. Peça ao homem aí em cima que nos livre da maldade das pessoas boas. São as piores.
Vamos fazer um samba em Caraíva. Vamos chamar o Caraivana e todos os amigos. Vamos enterrar umas coisinhas suas embaixo do cajueiro, para que você se espalhe por seus troncos, eternos, e abrace a gente com sua copa gigante. Você estará viva no Francisco e em cada gol do Galo, afinal a nossa religião. Obrigado por existir em nossas vidas. Seremos felizes em sua homenagem.