Até meados da minha adolescência, eu joguei no América. Futebol de salão. Era um ponta habilidoso, driblava e chutava bem, tinha bom passe, jogava com inteligência e o fazia com categoria e estilo. Meu problema, no entanto, residia no fato cada vez mais irrefutável de que o meu negócio era treinar. Sim, amigos, eu era o famoso, o terrível, o temido leão de treino, também conhecido como malabarista de farol – aquele que se esconde quando a vida rola pra valer.
Essa condição me proporcionou pelo menos uma grande vitória em meus quase 10 anos de carreira no América: jamais ganhei do Atlético. Agradeço a todos os meus companheiros de clube pela façanha, e os felicito por isso – afinal, todos eles, sem nenhuma exceção, eram atleticanos. Jamais necessitamos recorrer ao autogol para fazer o nosso Galo ganhar. Mas, se preciso fosse, eles sabiam poder contar comigo. Estufaria as redes e ergueria o punho cerrado do Rei.
Guardei carinhosamente a minha camisa do Coelho quando enfim encerrei minha exitosa carreira de leão. Tinha listras verdes e pretas, mangas compridas, oficial sem patrocínio, número 11, uma relíquia com a marca da minha desabrochada juventude, dos meus gloriosos dias de treino – quando brilhava nos coletivos, depois das exaustivas sessões de polichinelo. Pois eu a troquei com um torcedor do América que oferecera uma camisa falsificada do Galo. Eu era bom de negócio.
Não foi exatamente a camisa falsificada que me encheu os olhos. Foi o fato de estar diante de um torcedor do América. Eu só conhecia o pai do Daniel, e mesmo assim me parecia um impostor. De resto, nos anos 80 o torcedor do América era uma ficção – bem, ele ainda o é.
Já naquele tempo, dizia-se que havia envelhecido, mas tampouco havia velhos americanos. Talvez tivessem morrido, pensava com meus botões. E de repente estava eu diante de um exemplar daquela espécie já extinta, um Tiranossauro Rex no Jurassic Park. Entreguei-lhe a camisa como quem desejasse que ela pudesse viajar pelo espaço-tempo até o universo paralelo de onde teria vindo aquele ser exótico.
O estado de encantamento pelo torcedor do América não era sua primazia. Acontecia também com o cruzeirense. Eu morava na rua do Ouro quando correu entre a meninada a notícia bombástica: acabara de se mudar para a Bambuí uma criança cruzeirense. Descemos em polvorosa. Esgueiramo-nos por entre as pilastras do prédio para observar aquele extraterrestre: como vivia? Do que se alimentava?
Com o tempo, fomos nos aproximando do menino cruzeirense. Até que pudemos estabelecer contato e, por fim, catequizá-lo, transformando-o em atleticano. Melhor teríamos feito se o tivéssemos mantido isolado, de modo a preservar sua cultura, hoje desaparecida. Mas não tínhamos ainda essa consciência, que apenas se aplicava muito recentemente aos índios isolados da Amazônia.
A preponderância do Galo na cidade era algo tão arrebatador – e ainda o é – que avançava como um vírus, indistintamente, sobre donas de casa e militantes mulheres contra a ditadura, peões de obra e publicitários, gente com ojeriza pelo futebol e qualquer forasteiro que por essas terras se aventurasse (conheci em São Paulo, outro dia, um coreano atleticano que por BH vivera). Resultado de mais de século em que rivais foram passando – do Siderúrgica ao Sete de Setembro, do Yale ao América, do Palestra ao Crüzeiro. “Eles passarão”, previu o poeta gaúcho Mário Quintana, “nós passarinho”. Passarinho nada – “aqui é Galo, porra”, ensinou seu conterrâneo.
Hoje acontece o primeiro jogo da final. Se o Galo terminar campeão, e a depender de apenas duas outras decisões em todo o país, será o maior campeão estadual do Brasil. O cruzeirense verá do sofá. O americano... bem, o americano não existe. Tudo normal nas Minas Gerais.