Não gosto muito de temas quentes e "assuntos do dia" por uma razão até meio prosaica: os debates são, quase sempre, emocionais em excesso e pobres em lógica, sem visão de futuro e, raramente, amparados por argumentos técnicos.
Para mim, literatura e poesia são uma coisa, discussão e debate técnico, outra completamente diferente; discussão que contraria a lógica não tem serventia, porque não produz nada positivo e, normalmente, não chega a lugar algum (ou, pelo menos, nenhum lugar onde valha a pena chegar).
Só de estar na pauta e ser um desses "assuntos do dia", já era motivo para não pisar nesse campo minado, mas como o aeroporto do Carlos Prates é, muito além de um equipamento urbano, uma peça fundamental num tabuleiro de xadrez que vive imobilizado em xeque mate a décadas, vou me arriscar.
Eu, pessoalmente, sou favorável ao fechamento, e explico: o risco para a vizinhança é grande demais. Nenhuma metrópole decente no primeiro mundo admitiria um aeródromo como o Carlos Prates. Não bastasse a minha opinião, temos os acidentes dos últimos anos, amparando a minha opinião. Como eu disse, lógica.
Há quem diga, não sem razão, que a região era tão pouco habitada nos idos de 1944, e que o Anel Rodoviário ainda demoraria décadas para existir, que a localização fazia todo o sentido. Eu discordo, até porque a área já integrava a mancha urbana lá atrás, em 1935, bem antes de sua construção.
Difícil saber o que leva um gestor a escolher como sítio aeroportuário uma área na zona urbana, já inserida num vetor de crescimento, e cujo adensamento é não apenas inevitável, mas estimulado e desejado (pelos loteamentos aprovados, pela infraestrutura que já existia e que foi sendo melhorada, e pelos novos loteamentos que vieram sendo aprovados desde então).
Falta de exemplo não foi, considerando que o aeroporto da Pampulha havia sido inaugurado pouco mais de 10 anos antes, fora da mancha urbana e numa distância adequada da zona central da cidade (15 quilômetros).
Na Pampulha, o aeroporto veio antes do bairro e da lagoa. No Carlos Prates, o bairro veio antes. Fosse o sítio escolhido um pouco mais à frente, pertinho da CEASA, esse debate não viria antes de 2040.
Mas foi o terreno escolhido e, sendo essa a realidade pelos últimos 79 anos, essa peça prejudicou o desenvolvimento do vetor noroeste de Belo Horizonte, obrigada a limitar a altimetria por conta do aeroporto funcionando e, por consequência, a densidade de uma das regiões mais tradicionais e bem servidas em infraestrutura na cidade.
Mas eu não falaria do aeroporto, até porque não seria nada mal construir um novo aeroporto, substituindo não apenas o Carlos Prates, mas também a Pampulha, por algo mais moderno e seguro. Ribeirão das Neves reúne disponibilidade de área e a proximidade ideal de Belo Horizonte, sem o risco do adensamento no entorno. Além disso, cá entre nós, o município teria a chance de se "re-vocacionar" e ganhar relevância econômica na região metropolitana.
Não fosse o seu fechamento um acontecimento crucial para o adensamento dos bairros Padre Eustáquio, Carlos Prates, Caiçara e vário outros afetados pelas limitações que a existência de um aeroporto na vizinhança obriga a ter, não teria nem tocado no assunto, espinhoso.
Falei de meu apreço pela lógica e, em nome da lógica, afirmo que nenhuma administração pode tolerar tanto investimento e tanta infraestrutura disponível numa densidade tão baixa. Isso seria, certamente, uso indevido dos recursos públicos ou, pior, um desperdício pura e simplesmente.
Agora, com o aeroporto efetivamente desativado, o leque de alternativas se abre, e medidas bastante simples como aumento do potencial construtivo (coeficiente de aproveitamento) e da altimetria permitida (coisa que dependia, exclusivamente, da desativação do aeroporto), esses bairros podem se tornar centrais e - novamente - atrativos para o mercado imobiliário, viabilizando a construção de novas moradias, e em grande quantidade.
Vou deixar os cálculos para os especialistas, mas me arriscar a dizer que essas mudanças poderiam viabilizar, facilmente, outras 100 mil pessoas em imóveis de todos os padrões, populares e acessíveis inclusive. E tudo isso a 15 minutos do Centro, com uma infraestrutura de fazer inveja aos bairros "zona sul" da cidade.
Sendo ambicioso e propositivo (mais propositivo do que ambicioso, considerando o quanto Belo Horizonte parou no tempo), criaria um VLT ligando o Centro à Pampulha, servindo Caiçara, Padre Eustáquio, Castelo e Alípio de Melo (e muitos outros), passando pela Pedro II, João XXIII e Heráclito Mourão, num trajeto essencialmente plano. Muito, muito melhor do que dezenas de milhares de carros misturados e disputando espaço com centenas de ônibus, e melhor que o BRT (a despeito de meu respeito pelo saudoso Jaime Lerner, uma solução de apoio e capilarização às redes de metrô mas jamais uma solução central de mobilidade urbana).
Ainda por cima, (o VLT é) elétrico, resgatando a história - e a glória - dos bondes de Belo Horizonte, que chegaram a ter 73 km de trilhos, posteriormente arrancados.
Se a área do aeroporto terá, pelo PL 636/23 em discussão na Câmara dos Veradores, seu zoneamento alterado para Área de Grandes Equipamentos Econômicos (Agees), um uso mais do que adequado seria o de criar um hub (uma grande central) de conexão para o transporte público, integrando linhas de ônibus, esse VLT proposto e a nova rodoviária, agora bem localizada, moderna e às margens do Anel Rodoviário, com os acessos corretos e condições para funcionar adequadamente.
Imagine chegar a Belo Horizonte meia hora antes, e tomar um VLT (para quem não existe engarrafamento) até o Centro e outros bairros? Imagine o volume de poluição que jamais será produzido?
Avançando na proposição e sendo ainda mais ambicioso, um hub de transportes em meio a um belíssimo parque, com espaço para realização de shows e eventos de grande porte (com as devidas atenções ao incômodo da vizinhança), integrado a diversos equipamentos esportivos, quadras cobertas, trilhas para caminhada e, cereja do bolo, uma pista de skate gigante, já pronta para campeonatos e exibições.
Se é para pensar, precisamos pensar grande, sempre olhando para o futuro. E apenas para o futuro, porque os problemas atuais são os problemas que não foram enfrentados no passado (apenas postergados, ou com soluções parciais, pequenas, de curto prazo).
Ideias e projetos de impacto, mas pensadas para obras de baixo impacto e grande benefício. Projetos ambiciosos, quando bem concebidas e bem projetadas, geram obras com etapas e fases tão bem definidas que acabam definindo políticas "de estado" (e não "de governo"), já que se estendem por várias administrações, mas com entregas e operacionalidade a cada uma.
Escrevendo sobre o aeroporto, sobre o futuro possível para o vetor noroeste e sobre os erros cometidos e - insistentemente - repetidos pelas gestões municipais, me vem à mente uma música, talvez a que melhor traduziu o abismo entre o que é certo, o que deveria ser feito, e o que é - realmente - feito.
"Pindorama, país do futuro"
A música é "geleia geral", expressão genial criada por Décio Pignatari, mas imortalizada por Gil e Torquato Neto na Tropicália, para mim uma das músicas que melhor expõem as contradições brasileiras.
Assim como Gil e Torquato, peço agora licença ao poeta (in memorian) para adaptar - e utilizar - sua criação para falar de cidades, de urbanismo, mobilidade, legislação urbana, arquitetura e design.
Afinal, as contradições cantadas por Gil nos anos da Tropicália continuam aí mas, por alguma razão, incomodando menos, a ponto de mal merecer indignação e protestos.
Começo hoje essa coluna, pretensiosamente chamada de Geleia Urbana. A ideia é trazer uma visão crítica de problemas urbanos que poderiam ser melhor endereçados (e, quem sabe, superados) por boas ideias, bom senso e muita lógica.
Mais (muito mais) do que a minha visão pessoal, os textos trarão chamados à lógica e referências históricas, lembrando casos de sucesso no tratamento de questões urbanas, e algumas ideias de intervenção e melhoria para a nossa cidade.
O foco não é, por óbvio, criticar administrações e políticas públicas. Ainda assim, as críticas são muitas vezes inevitáveis, e estarão aqui sempre que se fizerem necessárias, até porque as cidades são organismos vivos, e as administrações municipais, suas "tutoras", encarregadas pela sociedade para gerir, propor e fiscalizar de forma delegada.
Uma administração dificilmente cria um problema ou "desencaminha" a cidade; normalmente, mantém políticas erradas ou anacrônicas que já existiam, mais mantendo o que já não funciona do que "inovando" em problemas novos. E mantém ideias ruins, muito provavelmente, por não arejar, não oxigenar e não ouvir novas ideias.
Raul dizia que "eu vim para confundir, não para explicar"; já eu sou o oposto: quero só explicar.
E propor.
Fechamento do aeroporto, adensamento, vetor noroeste, projetos de impacto, infraestrutura, parque, VLT, pista de skate: acho que, agora, você entendeu o porquê da Geleia Urbana. Semana que vem tem mais.