Le Corbusier nasceu na Suíça, mas abraçou a cidadania do país que o acolheu, a França. Foi um dos pioneiros da arquitetura moderna. Influenciou o planejamento urbano a partir de uma visão de setorização da cidade por usos, cinturões verdes que limitavam o perímetro urbano e do uso da novidade tecnológica de então, o carro (propondo cidades carro-centradas), conceitos materializados na cidade planejada de Chandigarh, na Índia.
Chandigarh é, em espírito e visão social e urbana, o que Brasília viria a ser pouco mais de uma década mais tarde. A falta de ineditismo e de senso crítico de Lúcio Costa não é, portanto, defeito do Arquiteto, mas fruto da força gravitacional das novas ideias da virada para o século XX, e da aproximação de Charles-Édouard Jeanneret, o Le Corbusier.
Le Corbusier e suas ideias traziam aquele encanto e colorido que somente as teses mais ingênuas (e jamais testadas) podem proporcionar aos seus admiradores. Figura solar, escolheu jogar seus dados nos países jovens ou pobres (ou ambos).
O que começou bem no Ministério da Educação no Rio de Janeiro (com os pilotis livres e com um pé-direito altíssimo, sugestão de um certo estagiário chamado Oscar Niemeyer), culminou numa Chandigarh megalomaníaca e, ao mesmo, tempo artificial e desigual desde seu nascedouro no planalto central brasleiro.
Brasília, 63 anos de idade, inicialmente apresentada ao mundo como o ápice do planejamento urbano, como a reunião de todas as boas ideias, permanece hoje como um museu estático do que sejam - ao contrário - as piores práticas, bem como símbolo da falência de um planejamento urbano excessivo e da sanha por controle e ordenamento (notadamente uma das ideias fixas e recorrentes de um certo espectro de pensamento; Freud explica).
Pior, evidencia - de forma contundente - uma espécie de “fratura exposta” nas ideias românticas: Brasília nasce negando acolhimento e moradias para seus trabalhadores originais, empurrando-os, desde sempre, para “cidades satélite” e favelas (ou “ocupações subnormais”, para usar um eufemismo detestável de nossos planos diretores).
O problema é que o modelo fez história e inspirou o restante do país, estragando cidades de norte a sul antes que alguém tivesse coragem de gritar “fogo”.
Passados 60 anos, temos agora outro francês em solo brasileiro reativando o debate sobre cidades, desenvolvimento urbano, vitalidade, revitalização, planejamento urbano e ordenamento espacial.
Mas, dessa vez, o francês tem os dois pés na realidade e, amparado por décadas num cargo equivalente ao de diretor de planejamento urbano do Banco Mundial, joga luz sobre a importância do mercado imobiliário e dos agentes econômicos na vitalidade e desenvolvimento sadio das cidades.
Esse francês é o genial Alain Bertaud que, para quem ainda não está familiarizado, foi definido como “(...) o principal urbanista que você ainda não conhece” na excelente entrevista feita por Anthony Ling para o Caos Planejado ainda em 2015.
Se você ainda não leu, sugiro interromper aqui e correr lá para ler.
Alain nasceu em Marselha e tem 84 anos com uma vivacidade, memória e firmeza de princípios surpreendentes. Coincidência ou não, me contou que, recém-formado, teve como primeira experiência trabalhar na equipe que desenvolvia o plano diretor de Chandigarh.
Alain esteve no Brasil a convite do Caos Planejado para o lançamento da edição em português de seu livro, “Ordem Sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades”, onde suas teses são expostas de forma didática e inteligente, sempre amparadas pelas evidências colhidas ao redor do mundo nas últimas 6 décadas.
Evidências de quê? De que o excesso de planejamento, de regras, de taxas e tributos compõem um quadro de restrições que levam, inexoravelmente, ao encarecimento das moradias e ao afastamento das camadas mais pobres das regiões realmente interessantes e com empregos nas cidades. Em suas palavras, “planejadores urbanos podem ser efetivos somente quando eles entendem as forças do mercado.”
Na visão de Alain, as cidades organizam-se em torno da oferta de trabalho que conseguem proporcionar aos seus habitantes. Cidades com baixa oferta não se desenvolvem, e deterioram com o tempo, porque as pessoas vão embora (Detroit, por exemplo).
Por outro lado, cidades com boa oferta de trabalho, mas com muitas restrições para construção de moradias se espalham por um território maior e obrigam o poder público a “desviar” recursos para um sistema de transporte que não drenaria os recursos se as pessoas pudessem morar mais perto da oferta de trabalho. Nesse modelo, as moradias nas zonas centrais têm uma valorização extrema e criam distorções, com vantagens para quem pode morar nas zonas centrais em detrimento de quem se vê obrigado a migrar para a periferia.
Como podemos ver, qualidade de vida e lazer estão diretamente relacionados à oferta de trabalho, mas intrinsecamente atrelados à possibilidade de se morar perto dessa oferta.
Alain nos mostra que ações amplas, abrangentes e longas demais geram distorções e desorganização das cidades, ao passo que um acompanhamento constante e pontual permite corrigir distorções a tempo, antes que se tornem caras demais ou incorrigíveis.
As cidades brasileiras são o reflexo de que ideias ruins e ultrapassadas podem permanecer como mantras, sem qualquer questionamento, décadas a fio.
Talvez seja hora de um olhar mais maduro e atual sobre o futuro das nossas cidades.
(texto originalmente publicado no Caos Planejado)